Um artigo de Ricardo Tarré Gomes
Este mês: um mestre da sétima arte que conseguiu enfurecer um mestre da literatura de horror, uma banda marcante que nunca desistiu, apesar da perda de um membro, e um grande prémio para quem avistou a bandeira de xadrez em primeiro.
Filme: ‘Shining’ (1980)
Jack Torrance (Jack Nicholson) consegue um emprego como caseiro de inverno do Overlook, um hotel isolado nas montanhas do Colorado, na esperança de ultrapassar o seu bloqueio de escritor. Ele instala-se com a esposa Wendy (Shelley Duvall) e o filho Danny (Danny Lloyd), que é atormentando por premonições. Jack não consegue escrever e as visões de Danny tornam-se cada vez mais perturbadoras. Após uma violenta tempestade que deixa o hotel cercado por neve e sem comunicações, o escritor descobre os segredos sombrios do Overlook e começa a entrar numa espiral de loucura homicida, aterrorizando sua família.
Baseado na homónima obra do mestre de horror Stephen King, o filme é considerado um dos melhores de sempre no seu género apesar do descontentamento do próprio King com a adaptação. Realizado e produzido pelo conceituado Stanley Kubrick, que também assinou o argumento em co-autoria com Diane Johnson, ‘Shining’ não difere substancialmente da história do livro mas é amplamente mais ambíguo na compreensão das temáticas e simbolismos do mesmo. As liberdades criativas de Kubrick enfureceram King ao ponto do escritor avançar, em 1997, para a produção de uma mini-série de três episódios fielmente adaptada da sua obra que, embora interessante, não se aproximou nem de perto da importância e influência do filme. O último filme de Steven Spielberg, ‘Ready Player One — Jogador 1’ é apenas um exemplo disso, com uma sequência exclusivamente dedicada ao filme de Kubrick, funcionando também como uma notável homenagem ao mesmo. King escreveu em 2013 uma sequela, intitulada ‘Doutor Sono’, que também será adaptada ao grande ecrã, provavelmente ainda no decorrer deste ano.
Stanley Kubrick era conhecido como um realizador difícil de trabalhar pelo seu carácter metódico e extremamente meticuloso com tudo o que dizia respeito à rodagem dos seus filmes. Em ‘Shining’, os actores foram sujeitos a repetirem as suas cenas dezenas de vezes, incluindo a mítica cena de Jack Nicholson com o machado ( Here’s Johnny!) que durou três dias a filmar e exigiu 60 portas, e a que continua hoje a ser um recorde do Guinness protagonizado por Shelley Duvall: 127 takes para uma única cena, a do taco de beisebol. O cineasta conseguiu, desta forma extenuante, tirar o melhor desempenho de Nicholson e de Duvall. O filme é considerado o primeiro a tirar partido da então recém-inventada steadicam, que permitiu seguir os actores de perto, salientando-se a excelência dos planos imersivos que seguem o pequeno Danny no seu triciclo pelos corredores do hotel. A fotografia de John Alcott, colaborador habitual de Kubrick, é exemplar, sendo que os planos exteriores do ficcional Overlook mostram o Timberline Lodge, no Oregon, e os interiores são um misto de cenários construídos e partes do hotel Ahwahnee, na Califórnia. Destaque também para a música e efeitos sonoros a par da dupla Wendy Carlos e Rachel Elkind, que são perfeitos a transmitir sensações como tensão, medo e choque nos momentos adequados.
Desde que me lembro que gosto de filmes de terror. Um gosto que me foi, em parte, passado pelo meu irmão do meio. Mesmo não tendo idade para os mesmos quando era criança, tentava sempre espreitar pela abertura da porta ou qualquer oportunidade para vê-los. ‘Shining’ passou na televisão em Portugal algures na primeira metade da década de oitenta e deixou-me aterrorizado. Não sei se foi verdadeiramente o primeiro filme de terror que vi (o videoclipe ‘Thriller’, de Michael Jackson, não conta) mas foi, seguramente, o que me ficou mais na cabeça. Lembro-me de, numas férias, ficarmos hospedados num hotel e os corredores do mesmo serem muito parecidos com os do Overlook, sem ninguém por perto. Temia que a qualquer altura podiam surgir duas crianças gémeas, uma bola de ténis vinda do nada ou a porta do quarto 237 abrir-se de repente! Vários anos mais tarde li o livro de Stephen King e, sinceramente, acho que este é um dos poucos casos em que o filme é melhor que o livro. Se o livro de King é desavergonhadamente místico e aborda o que se pode chamar uma “história de fantasmas”, o filme de Kubrick é mais subjectivo, hipnótico e uma obra-prima em termos de terror psicológico, que não nos dá todas as respostas e que acaba de uma forma sublime, com a simples mas tremendamente eficaz exibição de uma fotografia antiga.
Álbum: ‘Hysteria’ — Def Leppard (1987)
À medida que escrevo este texto, os Def Leppard estão a ser admitidos e homenageados no Rock and Roll Hall of Fame, organismo norte-americano sediado em Cleveland que todos os anos celebra uma série de artistas e bandas previamente nomeados por terem “contribuído com excelência musical por mais de 25 anos”. É apenas mais um reconhecimento na longa e notável carreira dos ingleses que teve o seu começo em 1977 na cidade de Sheffield. Inicialmente vista como líder da nova vaga do movimento de heavy metal britânico, a par dos Iron Maiden e Motörhead, a banda acabou por encontrar o seu estilo próprio com uma espécie de hard rock melódico e poderoso. Actualmente, os Def Leppard são Joe Elliott (voz), Rick Savage (baixo), Rick Allen (bateria), Phil Collen (guitarra) e Vivian Campbell (guitarra rítmica), que substituiu Steve Clark após a morte deste em 1991. Como acontece com a maioria das bandas, as suas carreiras são definidas por altos e baixos, com saídas e entradas de novos membros ou mudanças na sonoridade mas, no caso específico dos Def Leppard, um acontecimento iria, para sempre, marcar o carácter e a perseverança da banda.
1984: os Def Leppard estavam no topo do mundo. O seu álbum ‘Pyromania’, terceiro da carreira e lançado um ano antes, era o mais vendido por parte de uma banda de rock e só era batido nas tabelas de vendas norte-americanas, em termos absolutos, pela superestrela Michael Jackson e o seu mítico ‘Thriller’. A digressão de ‘Pyromania’ tinha sido um sucesso, com dezenas de concertos esgotados, e as sondagens davam os Def Leppard como a banda de rock mais popular do momento, à frente dos Rolling Stones, AC/DC e Journey. É então que, no último dia desse ano, o baterista Rick Allen tem um gravíssimo acidente de carro nos arredores da sua cidade-natal e, como resultado disso, o seu braço esquerdo é amputado. Analisando friamente a situação, qualquer banda a viver um tamanho pico de popularidade teria avançado para a contratação de um novo baterista, de modo a não desperdiçar o bom momento comercial. Allen, ainda na cama do hospital, acreditou que poderia voltar a tocar bateria e a sua força de vontade foi apoiada por todos os restantes colegas de banda, que apoiaram a sua recuperação e nunca procuraram um substituto. Com a ajuda da empresa Whirlwind, o baterista desenvolveu uma bateria adaptada, misto de acústica com electrónica, com vários pedais accionados pelo seu pé esquerdo a substituírem o uso que Allen teria dado ao seu braço esquerdo. Após dois anos de intenso treino, Allen chamou os companheiros e provou-lhes que estava pronto para voltar a tocar com os Def Leppard e gravar o próximo álbum. O resultado: ‘Hysteria’ foi um estrondoso sucesso comercial, ainda maior que o anterior álbum, com 25 milhões de discos vendidos em todo o mundo, uma digressão gigantesca e um total de 105 semanas presentes nas tabelas de vendas norte-americanas. O quarto trabalho de originais dos Def Leppard é célebre também por ter originado sete singles, incluindo o primeiro, ‘Animal’, o muito popular ‘Pour Some Sugar on Me’ e as poderosas baladas ‘Love Bites’ e ‘Hysteria’, que dá nome ao álbum.
Sempre ouvi, desde criança, Def Leppard em casa. Os meus irmãos mais velhos gostavam e era até a banda preferida do meu irmão do meio. Nas paredes do quarto, alternado com posters das nossas equipas de futebol e de algumas actrizes e modelos lá estavam os Def Leppard também. Assim como a adornar as capas dos cadernos da escola. Não tínhamos os discos em vinil mas sim cópias em cassete, incluindo a de um memorável concerto da digressão de ‘Hysteria’ em Denver, no estado do Colorado. Apesar de britânicos, os Def Leppard sempre tiveram mais sucesso e reconhecimento nos Estados Unidos e isso tem a ver com uma crítica musical bastante diferente dos dois lados do Atlântico. Segundo Joe Elliott, e eu tendo a concordar, os críticos britânicos valorizam mais a letra de uma canção do que a sua música e desvalorizam mais o gosto popular, ao contrário dos congéneres norte-americanos. Se bem que é inegável a mestria dos músicos em causa, também podemos concordar que algumas das letras das suas canções são algo ligeiras e pouco profundas (“deita-me açúcar em cima”, para dar um exemplo). A influência musical do produtor sul-africano Robert “Mutt” Lange, um perfeccionista, na carreira dos Def Leppard é clara, tendo ajudado a definir o seu estilo com duas guitarras principais alternadas (Clark e Collen tinham a alcunha de “terror twins”), riffs melódicos e harmonias vocais com várias camadas, misturando as vozes de todos os elementos em pós-produção. Os Def Leppard continuam no activo, após onze álbuns de originais editados, e são frequentemente citados como influência para bandas e artistas de díspares estilos musicais como os Metallica ou Taylor Swift.
Videojogo: ‘The Cycles: International Grand Prix Racing’ (1989)
Após o sucesso alcançado com ‘Grand Prix Circuit’, lançado em 1988, a editora e distribuidora Accolade decidiu apostar na mesma fórmula mas, desta vez, aplicada às máquinas de duas rodas. Desenvolvido pela canadiana Distinctive Software, que mais tarde seria adquirida pela gigante Electronic Arts e tornar-se-ia EA Vancouver, ‘Cycles’ é um simulador do campeonato do mundo de motociclismo de 1989, com a possibilidade de escolher entre três categorias (125cc, 250cc e 500cc) e com as quinze provas reais do calendário presentes. Infelizmente o mesmo não se pode dizer das motas, que são todas imitações das célebres exemplares da equipa Marlboro Yamaha da época, só diferenciadas entre si pelos dorsais exibidos pelos pilotos, e dos nomes dos motociclistas, em que não se encontram os grandes nomes da altura como Wayne Rainey, Kevin Schwantz, Eddie Lawson ou o, então, estreante Mick Doohan.
O jogador tem a possibilidade de escolher três modos de jogo, entre treino cronometrado, corrida única ou campeonato, cinco níveis de dificuldade, o número de voltas por corrida e pode colocar o seu próprio nome, além da já referida escolha entre as três categorias oficiais do motociclismo. Em modo campeonato é necessário efectuar a prévia qualificação para a respectiva corrida, ditada pelo melhor tempo conseguido, sendo que o abandono ditará a não qualificação. De resto, tudo como esperado, quem amealhar mais pontos durante a temporada será coroado como campeão no final. Apesar das evidentes similaridades com ‘Grand Prix Circuit’, destaca-se a correcção de um bug que este apresentava, nomeadamente o facto de que apenas um piloto podia abandonar a corrida. Em ‘Cycles’ não existe essa limitação irrealista, dos dez pilotos que começam cada grande prémio, vários podem ter um acidente e despistarem-se, incluindo o comandado pelo jogador.
Aos nove anos de idade, terá sido das primeiras vezes que mexi num computador e foi, certamente, a primeira vez que carreguei um jogo no sistema operativo MS-DOS, a partir de uma disquete. Era assim:
C:>A:
A:>cd cycles
A:CYCLES>go
O computador era o do meu pai e o meu irmão mais velho tinha trazido umas disquetes com jogos e programas para jogar às escondidas. A maior parte do tempo ficava a vê-lo jogar mas fui aprendendo como se carregava o jogo e passei a jogá-lo, também às escondidas, com o meu irmão do meio. Não me recordo qual o nível de dificuldade que jogávamos, provavelmente o mais fácil, com mudanças automáticas, mas lembro-me que não precisávamos praticamente de travar se antecipássemos bem as curvas, pelo que eu ficava a carregar na tecla de acelerar e o meu irmão nas setas direccionais. Até aqui tudo bem, não fosse o jogo gravar os tempos das quatros melhores voltas de cada circuito com o nome do jogador! Passámos a jogar com o caricato nome de um vizinho da nossa avó e, até hoje, não sei se o meu irmão mais velho alguma vez descobriu…