80’s Bits VIII

Um artigo de Ricardo Tarré Gomes

Este mês: um realizador do futuro distópico que previu a bancarrota real da cidade de Detroit, todos os Estados Unidos para ajudar a Etiópia e um jogo de tiros cuja música em 8 bits foi utilizada para vender máquinas de lavar. I’d buy that for a dollar!

Filme: ‘RoboCop — O Polícia do Futuro’ (1987)

Alex Murphy (Peter Weller) é um bom agente de polícia recentemente transferido para uma esquadra de Detroit, cidade à beira de um colapso financeiro e dominada pelo crime e corrupção. Ao ser surpreendido e assassinado por criminosos implacáveis, uma equipa de cientistas e médicos experimentais consegue trazê-lo de volta sob a forma de um cyborg de combate ao crime a quem dão o nome de Robocop, resistente a balas e bombas e equipado com a mais alta tecnologia de armamento. No entanto, apesar do seu novo exterior de metal, Robocop vive atormentado por fragmentos de antigas memórias humanas e revive em pesadelos a sua morte às mãos dos seus assassinos. Agora, o agente meio homem, meio máquina, propriedade de uma megacorporação de intenções duvidosas, procurará fazer justiça e obter a sua vingança.

Escrito por Edward Neumeier e Michael Miner, o argumento foi apresentado à Orion Pictures, que rapidamente deu luz verde ao projecto. O problema foi encontrar um realizador norte-americano conceituado para tomar conta do leme, com simplesmente o nome de “polícia-robô” a afastar o interesse de dezenas de cineastas. É então que o filme é oferecido ao holandês Paul Verhoeven , um arrojado realizador com carreira feita praticamente no seu país de origem. O que poderia ter sido apenas mais uma olvidável película de “série B” como tantas outras tornou-se num filme muito interessante. ‘RoboCop’ é muito mais do que uma fantasia distópica e ultraviolenta. Verhoeven conseguiu ver para além do misto de acção e ficção científica do argumento e identificou a possibilidade de fazer uma sátira à sociedade norte-americana da era Reagan, abordando temáticas como o consumismo, a influência dos media, a gentrificação ou o excesso de privatizações. A inclusão de fictícios blocos de noticiários e de publicidade funcionam de forma brilhante para situar o espectador no mundo peculiar de Robocop, que também explora o drama da procura do que resta de humano e da identidade perdida de Murphy por detrás do seu novo corpo metálico.

Peter Weller mostrou ser uma escolha acertada para o papel principal. A sua voz ressonante, aliada à sua constituição física que lhe permitia caber no “fato” de Robocop foram factores decisivos. O elenco está recheado de talento até então não muito conhecido do grande público, destacando-se as boas prestações de Nancy Allen (a parceira de Murphy), Miguel Ferrer (o yuppie Bob Morton) e dos veteranos Kurtwood Smith (o criminoso Clarence Boddicker) e Ronny Cox (Dick Jones, vice-presidente da OCP). Destaque para o trabalho da premiada equipa de edição de efeitos sonoros e para a excelente música a cargo de Basil Poledouris, tanto a nível do tema principal como ao longo de todo o filme, acompanhando adequadamente o tom das diferentes cenas. Uma referência ainda para a curiosidade do trailer original de RoboCop conter a música de ‘O Exterminador Implacável’ e não a Poledouris, que se tornaria igualmente icónica. Este facto é explicado pelo facto de ambos os filmes terem sido produzidos pela Orion e esta prática ser recorrente na altura. Não deixa de ser caricato, ainda mais com uma cena similar de um cyborg a surgir por entre as chamas…

O que é que queres ser quando fores grande? Esta pergunta clássica que se faz às crianças tinha para mim uma resposta quando fiz um desenho na primeira classe: polícia. Por alguma razão era o que eu queria ser e isto ainda antes de ter visto ‘RoboCop’! Em mais uma situação em que vi um filme que não era para a minha idade, lembro-me de em casa o termos gravado numa cassete VHS e revi-o muitas vezes. Recordo-me que as cenas da execução de Murphy e da apresentação de ED-209 que corre muito mal faziam-me um bocado impressão pela brutalidade gore mas era o preço a pagar por ainda ser uma criança. O sucesso do filme levou, em 1990, a ‘RoboCop 2’, uma sequela medíocre, até à morte da franquia com o horrível ‘RoboCop 3’, um “crime em curso” de 1993 que nem o próprio herói conseguiria evitar. O realizador brasileiro José Padilha, conhecido por ‘Tropa de Elite’ e a sua sequela, tentou reanimar Murphy com uma nova aparência robótica no remake de 2014 mas sem sucesso, resultando num filme desnecessário que, tirando uma ou outra cena interessante, não trouxe nada que justificasse a sua produção.

Música: ‘We Are the World’ — USA for Africa (1985)

A carestia severa que assolou a Etiópia na década de oitenta do século passado, principalmente entre os anos de 1983 e 1985, originou inúmeras iniciativas de solidariedade por tudo o mundo com o objectivo de tentar angariar fundos para ajudar a população do país africano. A nível musical, o Live Aid foi seguramente o evento mais importante e mediático, com dezenas das maiores bandas e artistas da altura a actuarem nos palcos de Londres e Filadélfia. Antes disso, já Bob Geldof e Midge Ure tinham reunido um supergrupo a que chamaram Band Aid, composto por alguns dos maiores e mais famosos nomes britânicos e irlandeses da música para gravar ‘Do They Know It’s Christmas?’. O single foi um sucesso tremendo no Natal de 1984 e originou uma “resposta” dos congéneres norte-americanos, denominados USA (acrónimo para United Support of Artists) for Africa.

A ideia de juntar as grandes estrelas musicais norte-americanas para gravar um disco cujas receitas amealhadas tentariam amenizar o flagelo da fome da população etíope partiu do artista e activista Harry Belafonte e do empresário Ken Kragen. O multi-galardoado Quincy Jones e Michael Omartian foram escolhidos como produtores e a influência de Jones permitiu atrair alguns dos nomes mais famosos, incluindo a dupla que seria encarregue de escrever a canção: Michael Jackson e Lionel Richie. Ao todo, entre contributos a solo, em dueto, coros ou instrumentais, cerca de 50 músicos participaram, com destaque para a presença de grandes nomes, entre outros, como Stevie Wonder, Tina Turner, Bruce Springsteen, Bob Dylan e Ray Charles, para além dos próprios contributos vocais do próprio Jackson e de Richie, que dá início à canção. Enquanto a letra apelava à compaixão humana, foi o apelo do orquestrador Quincy Jones para que todos deixassem o ego à porta que fez ‘We Are the World’ funcionar, conseguindo harmonizar e sequenciar vozes de estilos completamente diferentes. O single, por si só, acabou por vender mais de 20 milhões de cópias, a juntar às vendas do álbum com o mesmo nome, que incluiria outras nove canções e participações de alguns artistas que não estiveram presentes na gravação do single, como os Chicago e Prince.

Sabem quando uma música que até gostávamos começa a passar incessantemente na rádio e na televisão até a começarmos a enjoar? Aconteceu-me a mim e a muito boa gente que por cá já andava em 1985. Agora consigo novamente apreciá-la com o inerente saudosismo associado e é divertido tentar adivinhar os respectivos intérpretes e cada verso cantado mas, na altura em que foi lançada, a exposição à mesma foi avassaladora. Se no ano anterior a posição cimeira do Top Disco, programa semanal da RTP de telediscos, tinha sido disputada taco a taco entre ‘Still Loving You’ dos Scorpions e ‘I Just Called to Say I Love You’ de Stevie Wonder, em 1985 ‘We Are the World’ foi rei e senhor. O videoclipe de mais de sete minutos, com todas as estrelas a cantarem em uníssono no final, é uma das imagens dos anos oitenta. Em 2005, por ocasião do vigésimo aniversário da canção, foi lançado um DVD intitulado ‘We Are the World: The Story Behind the Song’, que documentou todo o processo de gravação e mostrou todo o sentido de responsabilidade e companheirismo entre os envolvidos, sem vedetismos de qualquer espécie. A tragédia que se abateu sobre o Haiti em 2010, causado por um devastador sismo que vitimou milhares de pessoas, originou uma nova versão de ‘We Are the World’, com um novo alinhamento de celebridades musicais mais contemporâneas, mas que não teve, nem de perto nem de longe, o mesmo impacto do original.

Videojogo: ‘RoboCop’ (1988)

Quando me foi lançado o desafio de criar o 80’s Bits e decidi que escreveria todos os meses sobre um filme, um álbum ou música e um videojogo que me tivessem marcado ou deixado grandes memórias da década de oitenta, ainda subsistiam algumas dúvidas sobre como os apresentariam. Seriam sempre os três do mesmo ano? Teriam que ter alguma ligação entre eles? Seria possível apresentar um combo de filme-música-jogo cada mês? A primeira edição, encabeçada por ‘Regresso ao Futuro’ até poderia ter sido acompanhado por ‘The Power of Love’ de Huey Lewis and the News e a adaptação para o ZX Spectrum do filme mas o jogo é mesmo fraquinho e olvidável. Não sendo exequível este formato (imagine-se como seria encontrar um jogo de computador de ‘O Clube dos Poetas Mortos’), optei por não fazer conexão entre as três áreas. No entanto, este mês apresenta uma ligação entre filme e videojogo. Não por preguiça editorial ou carência de ideias mas porque o jogo de computador em causa haveria, certamente, de marcar presença numa das próximas edições da rubrica.

As adaptações de filmes para videojogos nem sempre correram bem. Talvez ainda escaldada pelo fiasco monumental que foi a versão para a consola Atari 2600 do filme ‘E.T. — O Extra-Terrestre’, que arrastou a própria Atari para a bancarrota e contagiou todo o mercado especializado em 1983, a indústria dos videojogos mostrava-se pouco interessada em adaptar obras da sétima arte. É então que surge a Ocean Software, uma produtora e distribuidora sediada em Manchester que arriscou em garantir licenças de filmes ainda em produção e viria a tornar-se um gigante da indústria até finais do século passado. Um dos grandes sucessos da empresa britânica foi justamente ‘RoboCop’. A Ocean adquiriu os direitos à Orion Pictures ainda na fase do argumento, atribuiu uma sublicença à Data East e o resultado foi um êxito tremendo. O jogo foi lançado para praticamente todos os computadores e consolas existentes na altura e seria ainda disponibilizado para o Game Boy no início da década de 90. Foi, por exemplo, um dos jogos mais vendidos de sempre para o ZX Spectrum, mantendo-se em primeiro nas tabelas por mais de um ano e meio.

Foi precisamente a versão para o Spectrum que eu tive e joguei. Conhecidas que eram as limitações técnicas deste computador em comparação, por exemplo, com o grande rival Commodore Amiga ou com as máquinas de arcade, é de louvar o trabalho que foi efectuado nesta conversão pela Ocean. A crítica especializada considerou mesmo a versão para o Spectrum como superior. É certo que os gráficos na versão de arcade são excelentes mas a máquina da Sinclair Research fez mais com menos. Melhor adaptação do material origem, com mais cenas fiéis ao filme e uma boa e diversa mecânica de jogo, scrolling e animações suaves, digitalizações de discursos do filme e efeitos sonoros bastante aceitáveis. Nunca cheguei ao final do jogo mas gostava particularmente de alcançar a parte em que tínhamos que elaborar um retrato-robô de um suspeito, tendo para isso que agrupar as partes correctas da cara e cabelo que nos eram disponibilizadas, uma espécie de “quem é quem” electrónico. A versão para o 128K do ZX Spectrum é ainda popular também por ter emprestado a sua música de ecrã inicial a um anúncio de electrodomésticos da Ariston, um facto tão bizarro como a própria peça publicitária em si.