80’s Bits XI

Um artigo de Ricardo Tarré Gomes

Este mês: o padrinho de Leone num compromisso de quatro horas, a mítica e saudosa baía do Campo Grande e o pai dos managers que é um português mestre da táctica.

Filme: ‘Era Uma Vez na América’ (1984)

O filme conta a história de um grupo de amigos de ascendência judaica que crescem juntos cometendo pequenos crimes nas ruas do Lower East Side, em Nova Iorque. Aos poucos, estes crimes vão assumindo maiores proporções e os amigos tornam-se respeitáveis mafiosos, em plena época da lei seca. O entrelaçamento de companheirismo, ambição e traição leva a uma reviravolta na história, e, 35 anos depois, o único sobrevivente do grupo, “Noodles” (Robert De Niro) volta ao bairro para descobrir o que realmente aconteceu.

Em meados dos anos sessenta, chegou às mãos do realizador Sergio Leone o livro ‘The Hoods’, da autoria de Harry Grey, pseudónimo de um gangster tornado informador da polícia. Leone, cineasta italiano creditado como o inventor do género spaghetti western dos quais são exemplo os lendários ‘O Bom, o Mau e o Vilão’ ou ‘Aconteceu no Oeste’, ficou fascinado com a obra e chegou mesmo a encontrar-se várias vezes com Grey para compreender a América do ponto de vista do autor. Alguns anos mais tarde, a Paramount Pictures viria a oferecer a Leone a oportunidade de realizar ‘O Padrinho’ mas este recusou-a em favor do seu “projecto de vida”, que apenas chegaria aos cinemas doze anos após a obra de Francis Ford Coppola estrear nas salas. Quando acabou de rodar ‘Era Uma Vez na América’, Leone tinha cerca de nove horas de filme e tratou, juntamente com o editor Nino Baragli, de cortar para cerca de seis horas. A intenção seria de lançar o filme com duas partes de três horas cada mas a Warner Bros vetou a ideia. O realizador acabou por aceder editar o filme para as 3 horas e 49 minutos e foi com esta duração que o mesmo foi apresentado e aclamado em Cannes. No entanto, o filme seria ainda reduzido para os 139 minutos apresentados nas salas norte-americanas, cortando cenas importantes para o desenvolvimento e compreensão da trama e à revelia do próprio Leone, o que significou um desastre nas críticas e nas bilheteiras. Internacionalmente, o público pôde ver a mesma versão estreada em Cannes e foi esta a adoptada depois nos lançamentos para VHS e DVD, o que acabou por reabilitar o filme como uma obra de elogiada qualidade.

Robert De Niro como David “Noodles” Aaronson encabeça um elenco de excelentes actores, onde se destacam também James Woods, Elizabeth McGovern e Joe Pesci. De Niro e Pesci, ambos como peixes na água dado à quantidade de papéis de italo-americanos ligados ao crime organizado que interpretaram nas suas carreiras, não desiludem, apesar do reduzido papel do último. James Hayden, que encarnou “Patsy”, faleceria tragicamente pouco após o final da rodagem, antes de poder ver o que poderia ser o seu grande lançamento no cinema. O filme marca ainda a estreia da talentosa Jennifer Connelly no grande ecrã ao interpretar a mesma personagem de MCGovern na sua infância. Ennio Morricone, colega de escola de Sergio Leone e que formou com este uma das maiores parcerias realizador/compositor da história do cinema, alcançou neste filme um dos melhores trabalhos da sua longa e prolífica carreira. A melodia principal de ‘Era Uma Vez na América’ é belíssima e em todo o filme as partituras de Morricone assentam de forma perfeita com os desenvolvimentos no ecrã. No que se tornou numa espécie de anedota de Hollywood, a nomeação do compositor italiano para os Oscars não foi aceite por uma tecnicalidade. Para além de não ter sido entregue a papelada a tempo, a infame ânsia de editar ao máximo a fita para as salas norte-americanas fez com que o nome de Morricone fosse cortado acidentalmente dos créditos iniciais, tornando assim a candidatura inelegível. Oh, porca miseria! — terá exclamado o veterano italiano.

Não vi ‘Era Uma Vez na América’ nos anos oitenta, nem mesmo nos anos noventa. Só descobri este épico filme no início do século, quando trabalhava num clube de vídeo e chegou o lançamento em DVD. Olhei para a duração e torci um bocado um nariz. Afinal, eram 229 minutos, repartidos por dois discos, mas a sinopse interessou-me e quis perceber porque é que aquele filme de 1984 me tinha, até então, passado algo despercebido. Comecei por ver aos poucos na loja mas cedo percebi que se tratava de uma obra de qualidade que merecia um visionamento mais atento em casa. A última película de Sergio Leone, que viria a falecer cinco anos após a estreia do filme, é para mim, a obra-prima da carreira ilustre do mestre romano, um dos maiores cineastas de sempre e que claramente influenciou realizadores como Quentin Tarantino. A comparação com a saga ‘O Padrinho’ (os primeiros dois filmes, já que o terceiro é apenas um escusado sucedâneo) coloca-se muitas vezes pela aparente semelhança temática e localização espácio-temporal mas considero que é injusta, especialmente para o filme de Leone, que acaba por ficar mais na sombra do prestígio (justo) de que gozam as obras baseadas no livro de Mario Puzo. Se, ainda assim, tivéssemos que comparar os filmes, diria que ‘O Padrinho’ se debruça sobre a família enquanto ‘Era Uma Vez na América’ reflecte mais sobre a amizade de infância. E se há algo que todos podemos concordar é que os (bons) amigos são como família.

Música: ‘Baía de Cascais’ — Delfins (1987)

Os Delfins foram uma banda pop-rock portuguesa fundada em 1981. Tendo como únicos elementos constantes ao longo de praticamente toda a sua carreira o vocalista Miguel Ângelo e o guitarrista Fernando Cunha, a banda originária de Cascais editou dez álbuns de originais, vendeu mais de meio milhão de discos e a sua música foi presença assídua nas rádios nacionais desde a segunda metade dos anos oitenta e o final do século passado. Após um período menos conseguido em que o próprio Cunha admitiu que a banda não conseguiu manter a fasquia de qualidade e popularidade anteriormente alcançada, os Delfins decidiram pôr um termo à sua carreira com um concerto de despedida em plena baía de Cascais no ano de 2009.

O primeiro álbum de originais apenas surgiria em 1987, após anos de luta por afirmação no panorama musical português através da gravação de maquetes, singles e até de uma participação no Festival da Canção. Ainda sem um contrato discográfico e com todas as despesas de gravação ao cargo da banda, seria lançado ‘Libertação’. A excelente recepção ao encore de um concerto na afamada discoteca Coconuts de Cascais, em que tocaram uma versão de ‘Canção do Engate’ de António Variações, valeria aos Delfins a assinatura de um contrato com a EMI. A entrada para a editora significou o regresso ao estúdio para regravar e remisturar os temas do disco de estreia, incluindo agora também a versão do original de Variações. O álbum foi muito bem recebido pela crítica e alcançou boas posições nas tabelas de vendas e radiofónicas, sendo o grupo contactado de seguida pela RTP para a gravação de dois telediscos — o referido ‘Canção do Engate’ e ‘Baía de Cascais’ (cujo respectivo videoclipe original não foi possível obter para incluir aqui no artigo).

Os Delfins bater-se-iam, no seu auge, com os Xutos & Pontapés, os GNR ou os UHF pela distinção de banda portuguesa de pop-rock mais popular e continuariam a lançar álbuns e a produzir singles que ficariam no ouvido dos portugueses como ‘1 Lugar ao Sol’ ou ‘Nasce Selvagem’ mas foi a ‘Baía de Cascais’ que sempre me ficou na memória. Confesso que a música portuguesa raramente esteve no topo das minhas preferências musicais, apesar de apreciar e reconhecer o valor de algumas bandas e artistas, mas é surpreendentemente fácil eleger a minha canção preferida cantada na língua de Camões. O tema transporta-me imediatamente para os verões dos anos oitenta, não pela letra mas sim pela melodia. É uma viagem saudosista que, para mim, não tem nada a ver com Cascais ou com a sua baía. Faz-me, ao invés, lembrar passeios a caminho e no antigo jardim do Campo Grande. Creio que todos podemos concordar com o poder da música e como certas canções nos fazem recordar pessoas, lugares ou acontecimentos das nossas vidas, às vezes sem explicação evidente. Talvez alguma vez estivesse a tocar no auto-rádio da Ford Cortina da minha tia numa dessas viagens e a minha mente estivesse, qual gravador de cassetes, em modo REC.

Jogo de computador: ‘Elifoot’ (1987)

O género de jogos de estratégia, nomeadamente de futebol, continua a ter muitos entusiastas por todo o mundo. Há vários títulos disponíveis para que possamos exercer a fantasia de ser técnico de futebol, seja em jogos no telemóvel ou mesmo através de modos específicos nas séries ‘FIFA’ e ‘PES’, mas continua a existir apenas um rei e senhor no que diz respeito à mais completa simulação do ofício profissional de um treinador, até aproveitada por clubes na realidade: o ‘Football Manager’. Esta série de jogos, iniciada em 2005 após a cisão entre Sports Interactive e Eidos Interactive (parceiros do saudoso ‘Championship Manager’), partilha o nome e pouco mais com um título de 1982 que deu início ao género. Distribuído pela Addictive Games e desenvolvido por Kevin Toms, o pioneiro ‘Football Manager’ foi escrito integralmente em linguagem BASIC e era, perdoem-me a piada, um jogo tremendamente básico mesmo comparando aos que lhe seguiram. Apesar das melhorias gráficas e não só que os seus concorrentes lançaram nos anos seguintes, continuavam todos os títulos a oferecer apenas a hipótese de um jogador. É então que surge no nosso país algo de novo…

Criado em 1987 para o ZX Spectrum pelo português André Elias, que pretendia um jogo que pudesse jogar com amigos (com cada um a poder controlar a sua própria equipa), ‘Elifoot’ contava com quatro divisões, com oito equipas cada, e a possibilidade até oito treinadores humanos. Esta primeira criação, também conhecida como “versão zero”, não teve um lançamento oficial mas as suas cópias acabaram por chegar a vários jogadores de Spectrum através do efeito da habitual pirataria da época. Vários ajustamentos foram feitos nos anos seguintes até ao lançamento de ‘Elifoot II’, em 1992. Esta nova versão, lançada para MS-DOS, permitia uma vasta liberdade de edição tanto de equipas como jogadores, pelo que era possível jogar na configuração original de uma espécie de competição europeia (com a presença dos três grandes do nosso futebol) ou alterar totalmente para uma lógica de campeonato nacional. De referir ainda que, à semelhança do que acontecer na maioria dos jogos de manager, neste em particular também extravasamos as funções de treinador para outras mais próprias de presidente, como gerir as finanças do clube e o aumento do estádio.

Sempre gostei de jogos de estratégia e muitas gravações fiz de vários jogos de Spectrum que jogava sozinho, visto não terem a possibilidade de múltiplos jogadores. Anos mais tarde, quando andava no sétimo ano, a questão do multijogador já era uma realidade popular através do ‘Elifoot’ e eram frequentes as jogatanas com colegas de turma. Cada vez que tínhamos um “furo” entre aulas, lá íamos uns cinco ou seis para a casa de um colega que morava mais próximo da escola e em menos de uma hora completávamos uma época. ‘Elifoot’ não fazia da complexidade táctica ou de grande diferenciação entre futebolistas os seus pontos fortes (muitas vezes resumia-se tudo a sorte por ter um jogador que desatava a marcar golos) e era na sua simplicidade e rapidez que nos cativava. Era a escolha acertada em termos de jogo de estratégia de futebol para entreter vários amigos a olhar para o ecrã de resultados enquanto estes se definiam, sem grandes pausas por cada treinador/presidente virtual a terem que arrastar na espera todos os outros. ‘Elifoot’ continuaria a expandir-se e a consolidar a sua fama (sendo muito popular no Brasil, por exemplo, de onde vem o vídeo no início do artigo), estando actualmente disponível para Windows, Android e iOS.