80’s Bits XVI

Um artigo de Ricardo Tarré Gomes

Este mês: uma regra três simples que inevitavelmente se complica depois da meia-noite, um reino mais unido do que nunca e pro bono e um clone do passado que consola toda a família.

Filme: ‘Gremlins — O Pequeno Monstro’ (1984)

O inventor Randall Peltzer (Hoyt Axton) está à procura de um presente especial para o seu filho Billy (Zach Galligan) e encontra algo interessante numa loja escondida de Chinatown. O lojista recusa vender-lhe Mogwai, uma pequena criatura de aspecto dócil, pela grande responsabilidade que esta acarreta mas a transacção acaba mesmo por ser feita, sob a condição de que a criatura nunca seja exposta à luz, água ou alimentada após a meia-noite. Agora na companhia de Billy e baptizado como “Gizmo”, o pequeno animal peludo vê todas essas regras serem desobedecidas, o que resultará no surgimento de um bando de pequenos monstros descontrolados ( gremlins) que decidem destruir a cidade mesmo na véspera de Natal.

O projecto teve a sua origem num argumento especulativo de Chris Columbus, espontaneamente apresentado a terceiros com o objectivo de comprovar a sua habilidade de escrita. A história não era suposto ser filmada até que Steven Spielberg tomou conhecimento da mesma e comprou-a através da sua produtora Amblin Entertainment. Impressionado com a originalidade do argumento, Spielberg avançou como produtor executivo e escolheu Joe Dante para realizar o filme. Columbus, que mais tarde tornar-se-ia um dos conhecidos nomes da indústria ao realizar ‘Sozinho em Casa’ ou os dois primeiros capítulos da saga ‘Harry Potter’, teve que fazer alguns ajustes à sua história original de tom mais negro de modo a torná-la mais orientada para a família. Ainda assim, quando o filme estreou nos Estados Unidos, muitos pais que levaram as suas crianças ao cinema queixaram-se acerca da violência no filme, com cenas susceptíveis de chocar os mais pequenos. Alguns dos “culpados” terão sido o próprio trailer original do filme, que praticamente não mostra os gremlins, e o material de promoção, mais focado no adorável Gizmo.

‘Gremlins’ pode ser catalogado como uma comédia negra, um género que se apresentava bastante popular na altura. Filmes como uma base de comédia ou de acção mais ligeira começavam a incorporar elementos próprios de thrillers ou mesmo de terror fantástico na concepção de entretenimento, como no caso de ‘Os Caça-Fantasmas’, que curiosamente estreou no mesmo dia. Tal como as misteriosas criaturas, também o filme sofre uma metamorfose sensivelmente a meio que altera radicalmente o estilo da película. Acabaria mesmo por receber nos Saturn Awards o prémio de melhor filme de terror do ano, assim como distinções para melhor realizador (Dante), melhor música (Jerry Goldsmith) e melhores efeitos especiais (Chris Wallas).

Assim como ‘Assalto ao Arranha-Céus’ é defendido como um “filme de Natal” por muita gente, também ‘Gremlins’ apresenta argumentos para ser considerado como tal. Ora vejamos, o filme passa-se em plena época natalícia, com a pequena cidade de Kingston Falls toda decorada para o efeito. Os seus habitantes (e mais tarde os próprios gremlins) cantarolam cantigas típicas da quadra e o clássico ‘Do Céu Caiu Uma Estrela’ está a passar na TV. Para além disso, Gizmo é uma prenda antecipada de Natal de pai para filho. Talvez por tudo isto o filme permaneceu na minha memória associado a esta época festiva desde que o vi em criança. Décadas mais tarde, entendo-o também como uma sátira ao próprio Natal e ao consumismo e exageros próprios da época. É a justaposição da candura da quadra com o negrume do humor que faz o filme funcionar de forma divertida. Poderia a história do filme passar-se em qualquer outra altura do ano? Poder, podia, mas não era a mesma coisa!

Música: ‘Do They Know It’s Christmas?’ — Band Aid (1984)

Em Outubro de 1984, uma série de reportagens que o jornalista Michael Buerk fez para a BBC alertou o Reino Unido para a carestia severa que assolava a Etiópia. Bob Geldof, vocalista dos Boomtown Rats e até aqui uma figura quase desconhecida fora das ilhas britânicas, ficou sensibilizado com o flagelo da fome no país africano e contactou Midge Ure, líder dos Ultravox, no sentido de trabalharem numa canção de caridade. Geldof adaptou a letra de uma canção inédita sua e Ure compôs a parte musical. Faltava, então, convencer alguns dos maiores nomes britânicos da música a participarem e após receber a imediata aprovação de Sting e de Simon Le Bon, vocalista dos Duran Duran, o projecto entrou em velocidade de cruzeiro para assegurar que o disco estaria pronto para colocar à venda antes do Natal.

Para além dos artistas já referidos, juntar-se-iam para cantar alguns versos nomes importantes como George Michael (Wham!), Bono (U2), Boy George (Culture Club) ou Paul Young, que contariam também com a ajuda nos coros de membros dos Spandau Ballet, Bananarama, Status Quo e até os “intrusos” norte-americanos Kool & the Gang. A nível instrumental, a bateria foi assegurada por Phil Collins, o baixo por John Taylor dos Duran Duran e os teclados e toda a produção pelo próprio Midge Ure. A gravação da canção, pelo supergrupo que ficou conhecido como Band Aid, foi conseguida num único dia, a 25 de Novembro. Dois dos “monstros sagrados” da música britânica, Paul McCartney e David Bowie, não puderam estar presentes mas gravaram mensagens faladas que foram incluídas no lado B do disco, lançado a 3 de Dezembro. A canção foi um sucesso tremendo, não só no Reino Unido mas por todo o mundo, tendo angariado cerca de 8 milhões de libras. Tornou-se, na altura, no single mais vendido de sempre no Reino Unido, distinção que só viria a perder mais de uma década depois quando Elton John lançou ‘Candle in the Wind 1997’, a versão de tributo a Diana, Princesa de Gales, falecida nesse ano.

‘Do They Know It’s Christmas?’, longe de ser uma canção brilhante, teve o mérito de alertar para o flagelo da fome na Etiópia e despoletou uma série de semelhantes iniciativas musicais como ‘We Are the World’ dos USA for Africa ou todo o evento global Live Aid. A própria canção seria regravada mais três vezes (1989, 2004 e 2014), por diferentes artistas e sempre com fins solidários mas a original é aquela que me ficou na memória. De salientar que nas mais recentes versões foi substituído o contestado verso de possível dupla interpretação cantado por Bono: “ Well tonight thank God it’s them instead of you”. Não terá sido intencional por parte de Geldof mas o “ dá graças a Deus” também pode significar algo como “ ainda bem que são eles em vez de mim”, o que numa canção solidária acaba por soar, no mínimo, estranho.

Consola: ‘Atlantis — TV Game 127’

A Atlantis foi uma empresa portuguesa que comercializava electrodomésticos, desde rádios portáteis a antenas parabólicas, e que surgiu no mercado entre o final dos anos oitenta e o início dos anos noventa do século passado. A sua incursão pelo mundo dos videojogos deu-se através do lançamento de consolas de preço reduzido e com vários jogos já incluídos mas que não eram mais do que clones da velha Atari 2600. O primeiro modelo que chegou ao mercado nacional contava com 127 jogos incorporados e foi a minha primeira consola de sempre, um presente de Natal que fiquei a associar à quadra.

Fornecida com dois joysticks de pouca robustez e pronta a ligar a qualquer televisão, a Atlantis foi responsável por inúmeras horas de diversão na companhia de irmãos, primos e amigos. Era uma consola orientada para família pois, ainda que alguns jogos fossem só de um jogador, a larga maioria permitia jogar a dois, fosse em simultâneo ou por turnos. Apesar de tecnologicamente inferiores à dupla ZX Spectrum/Commodore Amiga que dominava o mercado no final dos anos 80, as consolas deste tipo encontraram algum sucesso, tendo até a Atlantis lançado outros modelos, com ainda mais jogos incorporados, nos anos seguintes. Por toda a Europa surgiriam outros clones da Atari 2600 (como o ‘TV Boy’, particularmente popular no Reino Unido) que prosperaram até a rivalidade Sega-Nintendo começar a tomar conta do mercado dos videojogos.

Para além dos jogos incorporados, a consola também possibilitava a colocação de cartuchos para títulos adicionais mas não me lembro de alguma vez ter visto alguns à venda, pelo menos nas lojas tradicionais. Assim sendo, cingi-me aos 127 que vinham com a Atlantis e a variedade era assinalável: jogos de tiros, plataformas, carros, desporto, palavras e até outros de géneros mistos ou inqualificáveis (como um em que o objectivo é tratar das cáries de uma boca ou outro em que teremos que evitar engordar demasiado). Abaixo ficam alguns dos que joguei mais e destaco, com a ressalva de que muitos deles não apresentavam sequer título:

- “Hóquei no gelo”: Adaptado do ‘Ice Hockey’ (1981) da Activision, foi um dos mais jogados de sempre lá em casa e o responsável pela quebra de ambos os joysticks originais (“cortesia” do meu irmão do meio e do meu primo). Um simples mas viciante jogo de 2×2 em que, para além de marcar golos, pode-se lesionar temporariamente o adversário.

- “Agarra que é ladrão!”: Cópia fiel de ‘Keystone Kapers’, um dos grandes sucessos para a Atari 2600, tendo inclusive ganho um certificado de mérito como melhor jogo de 1984 com menos de 16K de ROM. Controlamos um polícia em perseguição de um ladrão numa espécie de centro comercial de três andares.

- ‘Boom Bang’: Título dado ao clone de ‘Crackpots’, de 1983, que consiste em defender uma casa de vários tipos de térmitas. O jogador terá que acertar com vasos nos bichos invasores de modo a impedir que estes entrem pelos buracos e comam partes da casa.

- “Sapos”: Nome que dei à adaptação de ‘Frogs and Flies’ (1982), em que controlamos um sapo que terá que comer mais libelinhas que o adversário (a máquina ou um segundo jogador). Os batráquios terão que saltar de nenúfar em nenúfar, esticando a língua e evitando cair na água, à medida que vai anoitecendo.

- ‘Tom Boy’: Designação dada pela Atlantis à sua versão de ‘Pitfall!’ (1982), um dos jogos mais vendidos de sempre para a Atari 2600. O jogador controla uma espécie de Tarzan que terá de recolher todos os tesouros da selva enquanto evita obstáculos e perigos.

- “Cruzar o rio”: Versão de ‘Frostbite’ (1983) que por sua vez já recebia influência de clássicos arcade como ‘Frogger’ e ‘Q*bert’. Consiste em controlar um esquimó e, tal como o nome inventado que lhe dei, fazê-lo cruzar o rio de cima para baixo e vice-versa, o que permite construir o seu iglu antes que se afogue ou a temperatura chegue aos zero graus.

- “Vólei de praia”: Adaptação de ‘Realsports Volleyball’ (1982). Outro simples jogo de 2×2 mas muito competitivo até uma das duplas chegar aos 15 pontos. Se for jogado até à “negra” pode ver-se a mudança gráfica até ao pôr-do-sol.

- “Homem-Aranha”: Não apresenta nome mas é descaradamente um clone de ‘Spider-Man’, clássico da Parker Brothers de 1982 para a Atari 2600 que ficou na história como a primeira adaptação de sempre do famoso aracnídeo para o mundo dos videojogos. O jogo consiste em escalar edifícios lançando a teia e evitando o Duende Verde no topo mas não é propriamente “espectacular”.