80’s Bits XXIV

Este mês: um amor electro pode dar, irremediavelmente, curto-circuito; uma sorte grande de êxitos de verão e inverno e um ardina e entregar jornais e a partir janelas.

Filme: ‘Boneca Mecânica’ — Cherry 2000 — (1987)

No futuro, o executivo Sam Treadwell (David Andrews) vive feliz com a sua bela e sensual mulher, que é na realidade um andróide da série Cherry 2000. Quando a sua companheira é vítima de um acidente doméstico e entra em curto-circuito, Sam descobre que a mesma não poderá ser reparada e que aquele modelo específico já não se produz. No entanto, o disco de memória da sua ‘Cherry’, extremamente raro e valioso, encontra-se intacto e poderia ser utilizado para transferir toda a sua personalidade para um corpo novo do mesmo modelo. Determinado, Sam contrata a batedora E. Johnson (Melanie Griffith) para o conduzir a um depósito de robôs na Zona 7, um território interdito, devastado e altamente perigoso, onde aparentemente ainda se encontram unidades Cherry 2000. Johnson aceita a missão e arrasta Sam para uma alucinante viagem e aventura num mundo pós-apocalíptico de onde poderão não regressar.

Escrito por Michael Almereyda a partir de uma história de Lloyd Fonvielle, o argumento foi comprado pela Orion Pictures e a rodagem do filme ficou concluída no final de 1985. A ideia do estúdio seria lançar a obra no verão do ano seguinte mas contínuos adiamentos levaram a que ‘Boneca Mecânica’ estreasse precisamente em Portugal, no Fantasporto de 1988. Segundo o produtor Edward R. Pressman (que se tornaria conhecido mais tarde por ‘Wall Street’ ou ‘O Corvo’) a combinação de géneros, estilos e temáticas criou uma indefinição na Orion sobre como promover o filme. ‘Cherry 2000’, no seu nome original, pela combinação de ficção científica, acção, aventura, comédia, romance e mesmo algum drama, é um filme difícil de categorizar e levou a que nos Estados Unidos só estreasse em vídeo e que se tornasse uma espécie de obra de culto no circuito dos clubes de vídeo e, mais tarde, nos canais de televisão por cabo.

O filme realizado pelo pouco conhecido Steve De Jarnatt é claramente um produto do seu tempo, apesar do futuro que nos é apresentado, 2017, ser já um passado do nosso presente. Não se pode dizer propriamente que envelheceu bem, ao contrário de muitos outros filmes futuristas. Com a excepção da clara evolução em termos de robótica humanóide na qual se centra a premissa do filme, não vemos assim tanta evolução tecnológica retratada mas antes um mundo fragmentado entre zonas pós-apocalípticas (ao estilo de ‘Mad Max’) e áreas bem mais civilizadas, onde impera a obsessão pela reciclagem e onde o sexo é, literalmente, um negócio. No entanto, o filme explora algumas ideias e conceitos interessantes e, apesar da baixa produção, tem alguns valores a merecer destaque. A música de Basil Poledouris eleva a fasquia, com um belíssimo tema principal, e notam-se as presenças de Laurence Fishburne (aqui ainda creditado como “Larry Fishburne”), Brion James (de ‘O 5º Elemento’, entre outros) e Robert Z’Dar (o temível Matt Cordell da saga ‘Polícia Maníaco’) em pequenos mas curiosos papéis. Quanto à dupla de protagonistas apresenta alguma química e está competente quanto baste, com David Andrews uns ligeiros furos acima de Melanie Griffith, cuja característica voz doce não ajuda a tornar a sua personagem muito credível como a heroína durona do filme.

O facto de o filme ter tido a sua estreia internacional por cá no Fantasporto, o maior festival de cinema do país, poderá ter acelerado a sua disponibilização para emissão na RTP. Não me recordo em que ano por cá passou mas a verdade é que nessa noite estava em frente à televisão e nunca mais esqueci o filme. Curiosamente, anos mais tarde em conversa com uma colega de trabalho, também ela viu o filme e lembrava-se do mesmo. Demorei algum tempo a reencontrar a película, pois não é muito conhecida e o título tinha-se-me escapado da memória. Terá sido a primeira vez que vi um andróide retratado daquela forma (e não como uma máquina assassina de ‘O Exterminador Implacável’, já que, por exemplo, só descobriria ‘Blade Runner’ em adulto). A verdade é que após rever ‘Boneca Mecânica’ tantos anos depois, o fascínio já não foi, compreensivelmente o mesmo. Não é um grande filme (e também não é “tão mau que é bom”) mas conserva um certo encanto que só alguns filmes de baixa produção conseguem manter. Aborda reflexões interessantes sobre a humanidade e o que é ser humano, tudo sob a capa de um filme com falhas e características típicas de “série B”. A miscelânea de géneros também distingue a obra de outras e acaba por ser um paradoxo, no sentido em que foi o que dificultou a sua distribuição original e, ao mesmo tempo, o que ajudou a torná-lo um filme de culto. Uma última palavra para a tradução infeliz do seu título em português (ao contrário da grande maioria das traduções internacionais, que optaram por manter o nome original) e que quase remete para um outro género de filmes, muito mais “específicos”.

Álbum: ‘Jackpot 85’ — Vários (1985)

Playlist de algumas faixas de ‘Jackpot 85’

As colectâneas de música por vários artistas sempre atraíram o grande público pela diversidade da sua oferta. Como vimos anteriormente nesta rubrica, os anos 80 foram particularmente fortes nesta vertente também, com dezenas de compilações disponíveis no mercado a competirem entre si sobre qual apresentava os maiores êxitos de cada ano ou mesmo estação. A série ‘Jackpot’, produzida e distribuída pela EMI Valentim de Carvalho, deixou a sua marca com a impressionante soma de 14 compilações lançadas só nessa década. Assegurando regularmente um sólido conjunto de canções de artistas e bandas consagradas estrangeiras e nacionais, assim como a inevitável presença de one-hit wonders, as colectâneas ‘Jackpot’ (lançadas em cassete, disco de vinil e, no final de década, em CD também) chegaram a casa de muitos portugueses ou, pelo menos, fizeram eco dos maiores sucessos que passavam nas rádios e na televisão durante esse período.

Lançado perto da época natalícia de 1985 e reflectindo todo um ano de êxitos internacionais e nacionais, ‘Jackpot 85’ foi um dos álbuns de compilações mais bem-sucedidos da década. Anunciada fortemente na TV, a colectânea apresentava 28 faixas, distribuídas em duplo LP e cassete. O volume 1 começava da melhor forma com ‘A View to a Kill’ dos Duran Duran. Escrita pela banda e composta por John Barry para o filme ‘007 — Alvo em Movimento’, a canção permanece até hoje como o único tema da saga de filmes de James Bond a atingir a posição cimeira da Billboard Hot 100, a célebre tabela principal norte-americana de singles. Seguem-se ‘What About Love’ das manas norte-americanas Wilson e da sua banda Heart, ‘A Vida Num Só Dia’ dos portugueses Rádio Macau ou ‘Lavender’ dos britânicos Marillion. O lado B iniciava com o projecto The Power Station, composto por Robert Palmer e membros dos Duran Duran, com ‘Get It On (Bang a Gong) ‘, seguindo-se ‘Crazy in the Night’ da americana Kim Carnes, o one-hit wonder ‘Walking on Sunshine’ de Katrina and the Waves ou ‘Deixa-me Rir’ do lusitano Jorge Palma.

Tal como no primeiro volume, a segunda cassete/disco começava com a faixa principal de um filme, neste caso ‘We Don’t Need Another Hero (Thunderdome)’ de Tina Turner para ‘Mad Max: Além da Cúpula do Trovão’. De seguida, ‘Dunas’, o maior êxito dos G.N.R. e umas das canções mais facilmente reconhecíveis de sempre da música portuguesa. A presença nacional continuaria com ‘This Will Be The Last Time’, a “maravilha de um sucesso só” da breve carreira dos Zoom e que continua a passar frequentemente na rádio M80. Destaque ainda para a parceria vocal entre Kenny Rogers e Sheena Easton, em ‘We’ve Got Tonight’, um dos duetos mais conhecidos da década. O lado B deste volume iniciava com o popular one-hit wonder ‘Tarzan Boy’ do projecto italiano Baltimora e continha ainda, por exemplo, ‘Shelter Me’ do inglês Joe Cocker ou ‘Secret Lover’, a versão internacional do êxito nacional ‘Sempre que o Amor me Quiser’ de Lena d’Água.

O Natal de 1985 permanece na minha memória como o único do qual recordo claramente o que eu e os meus irmãos recebemos dos nossos pais. Não pelo efeito surpresa, já que os presentes foram todos comprados numa primeira visita ao então recém-inaugurado Centro Comercial das Amoreiras, mas porque foram três prendas marcantes. Eu recebi o boneco articulado do He-Man (quando me tornaria um fã acérrimo da personagem e dos respectivos desenhos animados), o meu irmão do meio recebeu um Subbuteo (um popular jogo de mesa de futebol, sendo ele já um fervoroso adepto do desporto-rei) e o meu irmão mais velho (que nos moldava aos dois o gosto pela música) recebeu a colectânea em cassetes ‘Jackpot 85’. Ficámos todos muito felizes com os presentes mas foi a música daquelas cassetes que mais ficou na memória até hoje. As canções acima referidas, as mais conhecidas, por continuarem a ser ouvidas desde a infância, não ficaram demasiado associadas à compilação. Agora as menos conhecidas, principalmente alguns sucessos de italo-disco e outros êxitos fugazes presentes no alinhamento, cada vez que as volto a ouvir conseguem verdadeiramente transportar-me novamente para aquele dia nas Amoreiras, aquele tempo, “aquele inverno”, como diriam os Delfins.

Jogo de computador: ‘Paperboy’ (1985)

Começa mais uma semana e o jogador, na pele de um jovem ardina que se desloca por bicicleta, terá que entregar o jornal ‘The Daily Sun’ a cada um dos seus subscritores, numa rua dos subúrbios em que tudo pode acontecer. Para além de deixar o jornal na caixa de correio dos clientes identificados, o jogador pode ganhar pontos vandalizando as casas dos não-subscritores (partindo janelas ao arremessar o jornal, por exemplo), ao mesmo tempo que deverá evitar embater contra automóveis, pessoas ou objectos a meio do caminho. O objectivo é chegar ao final da semana, mais propriamente domingo, sem ser despedido por cancelamento de subscrições ou por perder todas as vidas chocando contra algo ou alguém.

Originalmente lançado para as máquinas de arcade em 1985, o jogo desenvolvido pela Atari Games, começou por se distinguir dos demais nas salas de jogos pelo seu design, com um guiador de bicicleta montado na própria máquina para auxiliar o jogador a controlar o ardina. No seguimento do sucesso desta ideia original, o jogo viria a ser adaptado a mais de duas dezenas de outras plataformas nos anos seguintes. Para o ZX Spectrum, a conversão de 1986 ficou a cargo da Elite Systems e foi elogiada por se manter bastante fiel ao original. A adaptação da Tengen para a Nintendo Entertainment System (NES), dois anos mais tarde, ficou na história como o primeiro jogo para aquela consola a ser desenvolvido nos Estados Unidos da América.

Por cá, não me lembro de alguma vez ter visto alguém entregar jornais de bicicleta. É uma tradição mais norte-americana e a rua dos subúrbios percorrida no jogo é muito provavelmente baseada numa qualquer deste país (faz lembrar a fictícia Springfield dos ‘Simpsons’). Isso não impediu de ter curiosidade em jogá-lo no Spectrum após receber uma cópia e de tentar fazer as minhas entregas. É um jogo difícil de caracterizar em que género se enquadra pois envolve vários aspectos. Viria a ter uma sequela, ‘Paperboy 2’ (1992), novamente convertida a várias plataformas e com opção de jogar com um ardina masculino ou feminino. A personagem marcaria ainda presença nos filmes ‘Força Ralph’ (2012) e ‘Pixels’ (2015), ambos fortemente centrados no espírito de nostalgia de videojogos clássicos, um claro exemplo que o legado do jogo continua a correr “sobre rodas”.