80’s Bits XXVII

Este mês: um ser de outra galáxia que veio para encantar famílias e fazer colapsar o mercado de videojogos; um desastre que implicou um resgate de uma canção dos Beatles e uma luta contra o tempo ao volante de um icónico cavallino rampante.

Filme: ‘E.T. — O Extra-Terrestre’ (1982)

Elliott (Henry Thomas) é um menino de 10 anos que se depara com um pequeno alienígena refugiado nas traseiras da sua casa. A criança cria uma forte amizade com o inofensivo extra-terrestre, que foi deixado por engano na Terra, escondendo-o dos adultos. Com a ajuda da pequena irmã Gertie (Drew Barrymore) e do irmão mais velho Michael (Robert MacNaughton), Elliott vai fazer de tudo para proteger “E.T.” e evitar a todo o custo que ele seja capturado e possivelmente transformado numa cobaia pelos serviços secretos norte-americanos. Tudo o que a gentil criatura quer é regressar a casa e os seus jovens amigos tudo farão para que o consiga.

A ideia de um amigo imaginário extra-terrestre surgiu na mente de Steven Spielberg após a solidão sentida com o divórcio dos seus pais. Anos mais tarde, quando filmava ‘Os Salteadores da Arca Perdida’ na Tunísia, o mesmo sentimento voltou a atingir o cineasta norte-americano e após um desabafo com Melissa Mathison, argumentista e então namorada de Harisson Ford, a ideia começou a ganhar forma. Mathison concluiria o argumento com o apoio de Spielberg em 1981 e a Universal Pictures avançou para a produção do filme. O mesmo teve as suas cenas rodadas em ordem cronológica de modo a habituar as crianças a criar empatia com o boneco de E.T. (criado por Carlo Rambaldi e operado por vários actores e técnicos) e para retirar uma reacção emocional praticamente genuína com a despedida final. A música do colaborador de longa data John Williams também ajudou sobremaneira a transmitir esse sentimentalismo, sendo recompensada pela Academia com um Oscar, que também galardoou a película nas categorias de som, efeitos sonoros e visuais. ‘E.T. — O Extra-Terrestre’ seria também nomeado para outras categorias (melhor filme, realizador ou argumento, entre outras) mas o maior reconhecimento viria por parte dos espectadores que esgotaram as salas de cinema, tornando-o na altura o filme com a maior receita de bilheteira de sempre (só seria ultrapassado 11 anos depois por ‘Parque Jurássico’, curiosamente também realizado por Spielberg) e o que mais tempo permaneceu em exibição (mais de um ano) após a estreia.

Henry Thomas interpretou o pequeno Elliott de forma convincente mas a sua carreira nunca chegou a descolar, pautando-se por pequenos papéis em alguns filmes conhecidos ou presenças em obras pouco destacadas. Robert MacNaughton, no papel do irmão mais velho de Elliott, também teve uma boa prestação mas acabaria por mudar de profissão no final da década de 80. Já Drew Barrymore, a adorável Gertie, viria a tornar-se uma grande estrela de Hollywood com presença regular na indústria cinematográfica como actriz, produtora e até realizadora. Steven Spielberg já era um cineasta reconhecido em 1982 pelo trabalho em filmes como ‘Tubarão’ ou a referida primeira aventura de Indiana Jones mas ‘E.T. — O Extra-Terrestre’ veio definitivamente colocá-lo com um dos realizadores mais importantes e influenciadores da história do cinema. O filme ocupa um lugar especial na carreira de Spielberg e o mesmo sempre o reconheceu, incluindo a mítica imagem de Elliott a pedalar com E.T. no cesto da sua bicicleta e com a lua como fundo no logotipo da sua produtora Amblin Entertainment. O impacto do simpático alienígena estendeu-se à indústria dos videojogos… e quase acabou com a mesma. ‘E.T. the Extra-Terrestrial’, jogo desenvolvido e lançado apressadamente pela Atari para chamar ao mercado a tempo do Natal de 1982, é considerado por muitos com um dos piores videojogos de sempre e seguramente um dos maiores fiascos comerciais da história. O seu falhanço arrasou a Atari, levando-a a dividir-se em duas empresas e arrastou as suas congéneres para uma grande recessão entre os anos 1983 e 1985. O rumor de que a Atari teria enterrado num aterro sanitário centenas de milhares de cartuchos não vendidos permaneceu no imaginário como um mito urbano mas uma escavação em 2014 no Novo México veio provar que tal aconteceu mesmo, dando mesmo origem ao documentário desse ano ‘Atari: Game Over’.

Quando escolhi todos os filmes que iria incluir nesta rubrica, sobre o facto de terem sido os que mais me marcaram ou ficaram na memória, sempre reflecti acerca de considerar ‘E.T. — O Extra-Terrestre’ ou não. Apesar de ser uma das mais icónicas obras de cinema dos anos 80, só o vi pela primeira vez de forma completa já este século e tendo prévio conhecimento de todas as cenas-chave e mesmo de algumas falas clássicas. Uma tia minha até tinha uma caderneta de cromos do filme e muitos fotogramas do mesmo já estavam na minha memória desde criança. Porque marca então ‘E.T.’ presença na rubrica? Principalmente porque é uma obra que influenciou dezenas de outras que vim a conhecer e gostar posteriormente. Após um atento visionamento, há uma panóplia de elementos cinematográficos que foram seguidos, homenageados ou simplesmente copiados do filme de Steven Spielberg desde a ideia base e temática, aos planos usados, passando pelas sequências de acção até à tipologia de personagens. A título de exemplo, uma série como ‘Stranger Things’ nunca aconteceria (ou pelo menos não nos moldes que a conhecemos) se o filme de Spielberg nunca tivesse existido. O consagrado realizador sempre se opôs a qualquer remake ou sequela da sua obra de 1982 mas deu o ano passado a sua “bênção” a uma curta-metragem comercial de quatro minutos que mostra o reencontro de Elliott (novamente interpretado por Henry Thomas) com o seu amigo E.T. por altura do Natal, 37 anos depois.

Música: ‘Let It Be’ — Ferry Aid (1987)

‘Let It Be’ é uma canção originalmente gravada e lançada pelos Beatles em 1970, ano em que a banda inglesa anunciou a sua separação depois de uma década de inigualável sucesso. Escrita pela dupla John Lennon e Paul McCartney e interpretada pelo último, a canção foi incluída no álbum com o mesmo nome e representou o derradeiro grande êxito da carreira do mítico quarteto de Liverpool. Em 1987, ‘Let It Be’ voltaria às tabelas de vendas em força através da versão do grupo Ferry Aid, um conjunto de artistas na sua larga maioria britânicos. A iniciativa de gravar a canção para fins de caridade partiu do jornal The Sun no seguimento de um desastre com um ferry ocorrido em Março desse ano. O supercargueiro MS Herald of Free Enterprise, que se dirigia para a cidade inglesa de Dover, tombou pouco depois de zarpar do porto de Zeebrugge, na Bélgica, ceifando a vida a 193 pessoas entre passageiros e tripulação.

Para produzir a nova versão do clássico dos Beatles foi recrutado o trio Stock Aitken Waterman, na altura responsáveis por grandes êxitos da pop britânica e não só. Foi feito um convite a várias estrelas para gravarem as suas contribuições vocais, mesmo que muitas tivessem recusado por má relação com o polémico tabloide britânico. Ainda assim, responderam à chamada nomes conhecidos da música como Kate Bush, Boy George, Kim Wilde, Nik Kershaw, Andy Bell (Erasure) ou Mark King (Level 42), que também assegurou o baixo. Os solos de guitarra, que no original eram obra de George Harrison, ficaram desta vez a cargo dos virtuosos Gary Moore e Mark Knopfler. O coro contou ainda com a contribuição de outros artistas como Rick Astley, Bonnie Tyler e membros de bandas como Bananarama ou Frankie Goes to Hollywood. O cantor original Paul McCartney voltaria a contribuir com os primeiros versos da canção.

A versão de ‘Let It Be’ por parte do colectivo Ferry Aid fechou a trilogia de canções interpretadas por várias estrelas da música nos anos 80 para fins de caridade. Como vimos anteriormente aqui na rubrica, ‘Do They Know It’s Christmas?’ dos Band Aid e ‘We Are the World’ por parte do supergrupo USA for Africa foram as outras, ambas inseridas na iniciativa global Live Aid de combate à fome no continente africano. Em ‘Let It Be’, a parada de estrelas da música dispostas a ajudar foi mais modesta mas ainda assim voltou a captar o meu interesse. A canção é a melhor das três e quando a conheci, em criança, foi sem saber que o original era dos Beatles. Tínhamos o teledisco gravado numa cassete de vídeo e o mesmo servia, à imagem das outras canções solidárias, de desafio entre eu e os meus irmãos, em identificar correctamente quem interpretava os diferentes versos da música. Ainda hoje não sei quem são algumas das supostas estrelas. Deixa estar.

Videojogo: ‘Out Run’ (1986)

‘Out Run’ é um videojogo de condução automóvel no qual o jogador controla um Ferrari Testarossa Spider a partir de uma perspectiva de terceira pessoa. A câmara é colocada perto do chão, simulando a posição de um condutor de um Ferrari e limitando a visibilidade do jogador ao horizonte, tornando mais desafiante a tarefa de evitar os demais veículos na estrada. O objectivo do jogo é alcançar a meta numa corrida contra o tempo ao longo de várias etapas. Perto do final de cada etapa, o jogador deparar-se-á com uma bifurcação na estrada que lhe dará a opção de escolha de diferentes caminhos que levam a cinco finais distintos do jogo. Com hardware e gráficos revolucionários para a sua época e jogabilidade não linear, ‘Out Run’ é um clássico dos videojogos de carros e influenciou vários outros que lhe seguiram nos salões de jogos como ‘Sega Rally’ ou ‘Daytona USA’.

Após algum sucesso com os títulos arcade de motociclismo ‘Hang-On’ e ‘Enduro Racer’, ambos desenvolvidos por Yu Suzuki, a Sega decidiu avançar para a produção de um jogo com veículos de quatro rodas. Suzuki foi novamente eleito para encabeçar o projecto e uma pequena equipa de quatro programadores, um responsável pelo som e cinco designers gráficos desenvolveram o jogo no prazo de dez meses. Foram produzidos quatro tipos de cabines arcade diferentes (duas para jogar em pé e duas sentadas), todas com um volante, manete de mudanças e pedais de acelerador e travão. O lançamento da cabine “deluxe”, que se movimentava de acordo com as guinadas do volante e que sacudia quando surgia um embate, foi um tremendo êxito em 1986, emulando com bastante realismo a sensação de condução e velocidade, graças à sua tecnologia inovadora Super-Scaler e sensação de movimento alcançada pela técnica apelidada de “pseudo-3D”.

Os anos 80 foram a “época dourada” no que diz respeito às máquinas de arcade e a popularidade das mesmas estender-se-ia até meados da década seguinte, quando as consolas e os computadores pessoais começaram a ser igualmente potentes e a oferecer títulos de qualidade semelhante desfrutáveis no conforto do lar. Antes de ‘Out Run’ ser lançado, já existiam algumas máquinas de jogos de carros com volantes mas foi com este título que a popularidade deste género de jogos realmente explodiu. A tal cabine “deluxe” era o mais próximo de realidade virtual a que se podia aspirar naquele tempo e até a mim, que não ligava muito a jogos de carros, não deixou de impressionar e marcar na memória. Juntavam-se vários curiosos só para estar a ver um outro jogador ao volante. ‘Out Run’ ganhou vários prémios de jogo do ano e foi mesmo o jogo de arcade que mais dinheiro rendeu à Sega nessa década. Fora dos salões de jogos, o jogo já não impressionava tanto. A adaptação para ZX Spectrum, por exemplo, ficava até uns furos abaixo de ‘Chase H.Q.’, título de 1988 da Taito com gráficos e número de níveis semelhantes mas que até se tornava mais divertido de jogar pelo objectivo de abalroar o carro de bandidos que perseguíamos a alta velocidade. No entanto, o que ficou para a história foi aquela imagem da traseira do Ferrari Testarossa descapotável, com o condutor e a sua companheira loura de cabelo ao vento em cenários deslumbrantes. Um postal icónico dos anos 80.