'A Mulher à Janela' — Uma Manta de Retalhos

Estreou a 14 de Maio na Netflix o filme que tem todos os ingredientes para ser apelativo o suficiente a uma enorme franja de diversificado público. Realizado por Joe Wright e protagonizado por Amy Adams, conta ainda com Julianne Moore, Gary Oldman e Jennifer Jason Leigh num elenco que, só por si, justifica o tempo dedicado a ver o filme.

Foi nesse espírito que a autora das linhas deste texto embarcou em mais uma aventura Netflixiana, aventura esta acompanhada por um passado recente alegadamente menos afortunado como pano de fundo da estreia.

Muitas voltas dadas, o filme que começou a ser preparado em 2018 e esteve para estrear em 2020 no cinema, chega à plataforma de streaming em 2021 com o que aparentam ser oferendas de ouro, incenso e mirra.

São muitas as boas ideias e intenções que compõem este “A Mulher à Janela” e são elas que são alento ao espectador, ao mesmo tempo que sendo muitas e todas misturadas são também responsáveis pela enorme confusão que instalam até nos corações menos sensíveis.

“A Mulher à Janela” começa como uma clara homenagem a “Janela Indiscreta” de Alfred Hitchcock, quer no título, a sua referência mais imediata, quer na premissa principal do argumento, quer ainda na estética escolhida para a primeira parte do filme.

Anna, a personagem interpretada pela talentosa Amy Adams, é uma psicoterapeuta especializada em crianças que vive agora isolada em sua casa, sofrendo de intensa agorafobia.

A protagonista vive uma pacata vida plena de medicamentos, álcool e mágoas até ao dia em que a família Russell se muda para o apartamento em frente ao seu, que pode ser avistado do mesmo modo que James Stewart avistava a vida alheia da janela do seu apartamento em Greenwich Village.

O grande talento de Amy Adams, contudo, não consegue resgatar o facto de “A Mulher à Janela” não ser, de todo, um “Janela Indiscreta” porque falha de modo rotundo na gestão dos suspense e o argumento assemelha-se a uma enorme manta de retalhos em que nem sempre os protagonistas falam a mesma língua.

A problemática da linguagem falada estende-se também à linguagem estética e às opções tomadas quanto aos fios que mantêm as diversas partes do filme aglomeradas e coesas. Em muitos casos, os fios foram mesmo cortados.

A primeira metade do filme prometia até uma muito interessante e apelativa opção pela estética teatral em que as referências a filme clássicos, entre os quais o de Hitchcock, emprestam ao cenário despido e austero uma coloração que acompanha as transmutações emocionais de Anna.

Até ao momento em que Julianne Moore surge para contracenar com Amy Adams, esse parecia ser o caminho seguido e concederia a “A Mulher à Janela” uma oportunidade de compensar os momentos menos brilhantes do argumento.

Acontece que essa opção não é seguida até ao final e para o desenrolar da história, o filme transforma-se inesperadamente num outro filme que pode até nem ter relação com o que se passou até então.

Os personagens não são convenientemente trabalhados, as conversas são apressadas e desconexas, muitas vezes óbvias ou atabalhoadas e não constroem uma visão a três dimensões da história, que se torna muitas vezes confusa.

Como se não bastasse, a história que se desenrola lentamente para fundamentar o presente estado de Anna traz ainda uma terceira dimensão e ainda uma outra linguagem que contradiz a clássica austeridade da primeira e interessante parte de “A Mulher à Janela”.

Joe Wright não parou nessa dimensão e resolve introduzir um aparente quarto filme que, apesar de intenso do ponto de vista do culminar das tensões criadas, mais uma vez se desliga quase por completo das anteriores linguagens. Um final a la “Cabo do Medo” não parece ter conexão alguma com os passos dados até este culminar, sendo que a tensão não foi trabalhada o suficiente para a sequência final resultar.

“A Mulher à Janela” poderia ser um conjunto de histórias independentes aglomeradas como perspectivas diferentes de um mesmo episódio ou sequência e aí possivelmente poder-se-ia aproveitar melhor a torrente de ideias que jorrou pelo filme sem grande critério.

Tal não aconteceu e o que mantém esta produção à tona são mesmo os actores, que deixados à sua sorte com falas muitas vezes vazias ou despropositadas para o seu contexto, trazem a sua criatividade, talento e empenho para esse vazio, comprovando a sua excepcionalidade.

Ainda assim, “A Mulher à Janela” tem todos os ingredientes para ser uma das apostas mais certeiras da Netflix. Uma boa banda-sonora, história bem desenhada, excelentes actores, mas a concretização sofre de grande falta de confiança.

Ao invés de tentar que o espectador perceba a história, chegando ao ponto de ter de a explicar com grande pormenor no final do filme, “A Mulher à Janela” apenas precisava de se agradar a si mesmo. É nesse ponto que a falta de confiança permite escolhas menos acertadas ao nível da edição, da linguagem, dos caminhos.

Apesar de tudo, não deixa de ser um bom filme de entretenimento, ao nível dos melhores títulos recentes da plataforma de streaming. Mesmo sabendo de alguns dos seus momentos menos bem conseguidos, não deixa de ser um competente filme que se interessa pelo tema do isolamento, da estabilidade psíquica e da credibilidade de alguém fragilizado psicologicamente perante um mundo enganador e ilusório.

Classificação: ★★