Análise a ‘Bohemian Rhapsody’

A ideia de trazer até ao grande ecrã a história de vida de Freddie Mercury, o carismático vocalista dos Queen, já circulava por Hollywood há vários anos. O inglês Sacha Baron Cohen começou por ser a primeira escolha para interpretar Mercury mas “diferenças criativas” com os membros reais da banda, Brian May e Roger Taylor (que integraram o projecto como produtores musicais executivos) levaram à sua saída. Cohen pretenderia que o filme fosse apenas focado no líder da banda, ignorando os outros membros ao passo que May e Taylor tinham em mente o foco em todos os membros e a forma como a banda sobreviveu à morte prematura do seu vocalista. Nem uma nem outra das vontades prevaleceu e ‘Bohemian Rhapsody’ acabou por arrancar situando-se algo no meio, não se focando estritamente em Mercury mas também retratando apenas o período desde a formação da banda até à actuação estrondosa no Live Aid, em 1985. No entanto, e tal como a vida do cantor dos Queen, a sua produção não ficou imune a polémicas. O realizador Bryan Singer foi despedido pela 20th Century Fox antes do fim da rodagem pelas suas ausências prolongadas das filmagens e por violentas discussões com Rami Malek, actor escolhido para encarnar Freddie Mercury. Dexter Fletcher foi o escolhido para finalizar os dezasseis dias de filmagem restantes e a pós-produção mas Singer acabou por ser creditado como único realizador por indicação do sindicato de realizadores americanos.

Farrokh Bulsara (Rami Malek), um jovem nascido em Zanzibar e de ascendência parse, conhece Brian May (Gwilym Lee) e Roger Taylor (Ben Hardy), respectivamente guitarrista e baterista da banda Smile, que acabara de perder o seu vocalista. Juntamente com o baixista John Deacon (Joseph Mazzello), Bulsara entra para a banda, renomeada Queen, e altera o seu nome artístico para Freddie Mercury. A banda rapidamente regista uma ascensão brutal através das suas canções icónicas e som revolucionário. Contudo, a fama, o reconhecimento internacional e mesmo a sobrevivência da banda são postas em causa devido ao estilo de vida corrosivo de Mercury. A reunião triunfante acontece na véspera do evento musical de caridade Live Aid, onde Mercury, lutando contra uma doença mortal, guia a banda por uma das maiores actuações da história do rock.

Is this the real life? Is this just fantasy? É com estes dois versos em forma de pergunta que começa ‘Bohemian Rhapsody’, canção célebre dos Queen que dá nome a este filme. Entre optar por um retrato fiel da época e dos acontecimentos ou uma abordagem mais fantasiada dos mesmos, o argumento de Anthony McCarten e Peter Morgan escolhe, claramente, a primeira opção. É claro que há lugar a alguma ficção e a alguns anacronismos grosseiros (por exemplo, Mercury não foi diagnosticado como portador do síndrome VIH antes de 1987) mas que não impedem o bom desenvolvimento da narrativa. Uma das razões para a falta de alguma liberdade criativa prende-se também com o facto de, para além dos já referidos contributos dos membros originais da banda em actividade, May e Taylor (John Deacon retirou-se em 1997), o filme é produzido por Jim Beach, advogado e empresário de longa data da banda, o que garante uma certa fidelidade dos factos narrados. Isto acaba por impedir um rasgo de criatividade na narrativa e que verdadeiramente surpreenda o espectador.

Este não é um biopic clássico no sentido de filme biográfico que acompanha a banda desde a sua formação até ao fim, até porque os Queen ainda se mantêm em actividade (com Adam Lambert como vocalista). Opta por uma lógica de “ascensão, queda e reerguer” e por cobrir um determinado período e depois “salta” entre datas, uma característica dos filmes de Singer e que aqui resulta nos referidos anacronismos. Comparando com outra banda que tinha um vocalista “maior que a vida” como os ‘The Doors’ e o seu biopic realizado por Oliver Stone, Singer não explora muito a psique de Mercury como Stone o fez com Jim Morrison fora da sua banda, o que teria sido interessante. Muito do comportamento errático e perigoso de Morrison acontecia em palco, ao passo que Mercury era extravagante mas extremamente profissional e possivelmente o maior front man de sempre a interagir com o público. Faltou explorar melhor a mente de Mercury e como encarava os seus relacionamentos bissexuais com Mary Austin, Paul Prenter ou Jim Hutton e a ligação entre o homem nascido Farrokh Bulsara e a sua persona de palco.

Rami Malek, actor norte-americano de ascendência egípcia (conhecido principalmente pelo papel de Elliot Alderson na série ‘Mr. Robot’) tem uma notável interpretação como Mercury. É certo que não é a sua voz que ouvimos nas canções (isso ficou a cargo do cantor canadiano Marc Martel, que detém um tom de voz parecido com Freddie e por gravações do próprio) mas Malek conseguiu capturar bem os maneirismos, movimentos e energia em palco do ícone musical. Todos os restantes membros da banda têm interpretações sólidas mas sem muito espaço a brilhar, em contraste com a personagem de Malek. Uma palavra ainda para Lucy Boynton, segura no papel de Mary Austin, “o amor da vida” de Mercury e para Aaron McCusker, competente nas poucas cenas como Jim Hutton, o companheiro de vários anos até à morte do artista.

‘Bohemian Rhapsody’ funciona como uma celebração firme dos Queen, da sua música e do seu extraordinário vocalista Freddie Mercury, que desafiou estereótipos e quebrou as convenções para se tornar um dos artistas mais amados do mundo. Os problemas de produção que o filme enfrentou só não estão tão à vista no resultado final pelo notável trabalho de montagem de John Ottman, ainda mais importante depois da saída de Singer. Apesar disso, o filme alterna entre cenas interessantes cortadas algo abruptamente e outras potencialmente supérfluas que se arrastam e por ter, por vezes, um tom algo morno e moralista de homenagem à banda e condenação gratuita de comportamentos desviantes do seu vocalista. O final é o ponto alto do filme, com a apoteótica prestação no Live Aid recriada ao pormenor. Foi, efectivamente, a primeira cena a ser rodada (antes dos problemas começarem) e o cenário do antigo estádio de Wembley foi, inclusive, o maior de sempre para um filme de Bryan Singer (que, recorde-se, rodou vários da saga ‘X-Men’). A energia em palco do quarteto e a interacção de Mercury com 72,000 pessoas ao vivo, incluindo o momento à capela depois de ‘Radio Ga Ga’ que ficou conhecido como “a nota ouvida em todo o mundo” é um marco emocionante na espécie de” filme-concerto” que fecha a película. Também isto é cinema.