Análise a ‘The Northman’

★★★★★ — O Épico Conto Viking de Robert Eggers

Sete anos após a estreia do assombroso de época ‘The Witch’, e três anos após a jornada da loucura de ‘The Lighthouse’, Robert Eggers regressa triunfante ao grande ecrã, com a maior aposta da sua carreira até ao momento, na forma de um épico conto viking chamado, ‘The Northman’.

Escrito em parceria com o poeta Islandês Sjón, Robert Eggers apresenta a sua adaptação da lenda de Amleth, conhecida também por ter inspirado a obra de Shakespeare, ‘A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca’, trazendo-nos aqui uma história de vingança gráfica e visceral, contada em capítulos, que balança muito bem a vertente realista com a sobrenatural, tão comum na mitologia nórdica, e que continua a missão de Eggers, de explorar temas mitológicos de séculos passados.

No reino de Hrafnsey em 895, o Rei Aurvandil Corvo de Guerra (Ethan Hawke) regressa gloriosamente ao seu castelo nas montanhas de neve após conquistas em outras terras, celebrando com a sua esposa, a rainha Gudrún (Nicole Kidman), e o seu filho, o príncipe Amleth.

Tendo retornado da batalha com uma grave lesão, Aurvandil decide que está na altura de preparar Amleth para assumir a liderança do reino, e para tal, escolta-o a uma cave onde passa por uma intensa cerimónia espiritual liderada por Heimir (Willem Dafoe). O timing da mesma não poderia ser pior, quando no dia seguinte o Rei Aurvandil é assassinado à frente do filho pelo irmão bastardo Fjolnir (Claes Bang), o usurpador que se apodera do seu reino e da sua mulher.

Ordenado que lhe tragam a cabeça de Amleth, o rapaz jovem prestes a perder a inocência foge sorrateiramente do reino do tio, jurando vingança pelo mal que o mesmo trouxe à sua família.

Até aqui pode-se já sublinhar alguns pontos que imediatamente tornam este filme numa atrativa peça de cinema. Robert Eggers faz um trabalho fantástico ao trabalhar as escalas, com planos abertos que realçam a grandiosidade da paisagem do reino na costa irlandesa, e planos fechados que concentram e seguem as personagens sem cortar, com um passo de ação metódico que explode pouco depois num massacre vindo fora de campo.

‘Hei de vingar-te, pai. Hei de salvar-te, mãe. Hei de matar-te, Fjolnir!’ é o mote que guia Amleth (Alexander Skarsgard) anos mais tarde, agora um homem crescido e consumido pelo ódio, que viaja com um grupo de vikings. Ao chegarem a uma vila protegida por uma fortaleza, os homens bárbaros pilham o local com grande facilidade, eviscerando qualquer soldado à sua frente, por entre gritos, sangue, entranhas, animais desvairados, lama e deboche debaixo do céu frio e cinzento, numa sequência que é com certeza candidata a ‘melhor cena de ação’ do ano, coreografada e realizada com tremenda obsessão e a mais ínfima atenção ao detalhe.

Hoje em dia diz-se que já nada é inventado, e ‘The Northman’ não é a primeira nem será a última história do género que testemunharemos, mas um grande cineasta consegue sempre apresentar uma versão cinematográfica diferente e original, com um estilo próprio. Eggers é um autêntico autor, e se os seus filmes de culto e baixo orçamento não o deixaram claro (o que eu duvido), esta cena claramente deixa.

A coreografia de batalha aqui é impecável. Seguimos Amleth enquanto sobe uma muralha de madeira com os seus machados e entra para o caos de chacina com o menor número de cortes possíveis. A câmara segue Amleth em constante travelling, destacando a matança que ocorre nas extremidades do plano, enquanto observamos a matança central, executada pelo mesmo, que inclui apenas soldados, ignorando qualquer tipo de civil, e com todo o tipo de animais a correrem desorientados no meio do caos — cães, pássaros, galinhas — que nos faz mover o olhar para todas as pontas do ecrã, seguindo atentamente tudo o que se passa no background e no centro. É cinema guerrilha ao mais alto nível!

Após a batalha, Amleth observa tudo o que se passa à sua volta conflituoso, incluindo vikings que conversam naturalmente uns com os outros enquanto pessoas são aleatoriamente assassinadas ao seu lado, como se fosse o ato mais natural do mundo. Por entre conversas e rumores, Amleth descobre que o seu tio Fjolnir foi traído pelo rei da Noruega, que se apoderou do reino usurpado, e vive agora com a ex-rainha Gudrún e uma pequena tribo num local remoto da Islândia, onde governa. Concentrando-se no seu objetivo de vingança, Amleth disfarça-se de escravo e entra num barco de prisioneiros em direção à Islândia, procurando infiltrar-se no domínio do tio para concluir o mote para o qual dedicou a sua vida. No barco, conhece a escrava Olga, interpretada por Anya Taylor-Joy, uma bruxa que foi capturada na aldeia que pilhou e que viria a desempenhar um papel importante na sua jornada.

Robert Eggers é um perfecionista e um dos realizadores mais promissores da atualidade, sublinhando novamente o balanço impecável que faz entre as escalas, passando de um épico em wide para grandes planos fechados, minimizando o diálogo e deixando as expressões das personagens decifrarem o impacto emocional da cena. Ainda que o diálogo seja por vezes minimizado, principalmente para Amleth, podemos observar um cuidado na escrita e realização em adaptar a linguagem à da época.

O trabalho dos atores em ‘The Northman’ é excelente de uma ponta à outra. O compromisso de Alexander Skarsgard em tornar a personagem dele intimidante é incrível, transformando-se para o papel numa besta com oito abdominais, intensidade insana que se reflete nos recorrentes gritos de olhos esbugalhados por entre uma banda sonora de tambores e cânticos viking, e um olhar ameaçador que revela muito sem ser preciso dizer ou gritar nada. Um lance e conseguimos imediatamente sentir o ódio explosivo de Amleth.

A qualidade da performance de Skarsgard estende-se para o restante elenco. Anya Taylor-Joy, cuja reputação tem vindo a crescer nos últimos anos, faz um excelente trabalho como Olga e carrega-se como uma autêntica veterana apesar de ainda ser bastante nova; Nicole Kidman é brilhante e traz uma inesperada intensidade que nos surpreende em cenas decisivas; e por fim, Claes Bang, no importante papel de um antagonista viking, uma personagem em Fjolnir que poderia ser facilmente um simples vilão maléfico e genérico, mas que aqui é escrito com uma boa profundidade e um arco que nos permite observar a sua sabedoria e o amor pela sua família, tornando-o algo relacionável e ainda mais assustador quando o ajuste de contas inevitavelmente aterra à sua frente.

Na vertente técnica, a fotografia de Jarin Blaschke, que trabalhou com Eggers nos seus filmes anteriores, é de tirar a respiração. A produção teve lugar on location na Irlanda do Norte, o que ajudou imenso a inspirar a temática da época, e a espetacular cinematografia combina tons de amarelo de fogo com cenários negros de grutas e tendas sob as estrelas, transformando-se à noite num filme literalmente a preto e branco, até a cena se cruzar com alguma fogueira. Aí, o fogo satura e dá vida às cores, tornando por vezes o plano tanto a preto e branco como a cores. Esta experiência, combinada com a qualidade da montagem, da arte, do vestuário, da maquilhagem, da banda sonora e do sound design, tornam ‘The Northman’ numa experiência imersiva, autêntica e inspiradora para qualquer aspirante a cineasta.

Ainda, a experiência de cores intensifica-se nos transes noturnos de Amleth, revestindo-se de CGI no Além, e introduzindo um pouco da mitologia sobrenatural dos Deuses vikings, mas sem exagerar neste ponto — Robert Eggers fez questão de tornar o filme o mais realista e autêntico possível. Se há alguma crítica da minha parte que se possa colocar a ‘The Northman’, talvez algum do CGI pudesse ser melhorado, mas não é nada que comprometa a experiência, de todo!

Este filme é largamente temperado com uma banda sonora de Robin Carolan e Sebastian Gainsborough rítmica e bombástica, repleta de cantos e melodias nórdicas que nos transportam para a época, e que se mantém quase constante, algo que não é muito comum na filmografia de Eggers, que alterna mais vezes com o silêncio e o som ambiente em estilo art house, mas aqui agarra-se sem medo ao ‘blockbuster’, o que aumenta imenso a escala de ‘The Northman’. É uma história viking que, por vezes, toma pequenas direções inesperadas, acrescentando camadas à narrativa, mas que essencialmente retrata o clássico e arquétipo conto de vingança, explorando temas como a violência, a traição, o ódio, o amor, e acima de tudo, a humanidade e o impacto da escolha versus destino.

Segue o trailer de ‘The Northman’.