Falar de Richard Linklater e deste seu novo filme como um regresso à base pode soar como uma ideia redundante, tendo em conta que praticamente toda a carreira deste cineasta gira em torno da base: a memória, a infância, o regresso e a cura que esses elementos permitem.
Embora não seja um tema que assombre a sua cinematografia, está quase sempre presente e relaciona-se profundamente com a sensação da passagem do tempo, sendo “Boyhood: Momentos de Uma Vida” talvez o exemplo mais extremo dessa passagem.
“Apollo 10½: Uma Infância na Era Espacial” é, quase literalmente, uma adaptação das memórias de infância de Linklater a filme sob o disfarce de Stan, o pequeno protagonista da história.
Passa-se nos subúrbios de Houston, Texas, no Verão de 1969, nas proximidades do teatro de operações da NASA e durante o período quente do lançamento da missão espacial Apollo 11.
A versão mais pequena da nave espacial a que o título do filme alude tem a ver com a nave que o jovem Stan irá pilotar até à Lua antes de todos aqueles astronautas famosos ou, pelo menos, assim se passará na sua imaginação de uma maneira tão vívida que durante algum tempo é possível acreditar naquela versão da História.
A cabine de comando foi construída com erro de cálculo e o único que pode pilotar aquela nave é Stan, pelas suas dimensões perfeitamente adaptadas, e, por isso, é contactado pelo governo para entrar numa missão ultrassecreta de que nem a família terá conhecimento.
“Apollo 10½: Uma Infância na Era Espacial” é um filme simples, sem grandes invenções em termos narrativos, como aliás Linklater habituou o seu público, embora seja uma delícia no que toca à sua animação e imaginação. Claramente, o cinema não tem de viver do grande espectáculo para ser bom.
A história é tão linear quanto o contar e recontar de todas aquelas memórias que serão familiares a muitos dos que pertencem àquela geração e mesmo às subsequentes. As brincadeiras, as comidas, a televisão, a construção de um mundo novo cheio de perspectivas e futuro, as amizades, a escola, os interesses amorosos, são terreno comum a muitos dos mortais que verão o filme.
Esta é, contudo, uma ideia de filme germinada há 18 anos, quando o realizador ainda se encontrava na fase inicial do seu “Boyhood” e que nem sempre foi planeada para ser uma animação. A dificuldade de conseguir contar a história recorrendo a imagens filmadas ou mesmo às imagens de arquivo, ditaram um destino animado, mas não menos complexo.
Linklater junta-se aqui ao colaborador de longa data Tommy Pallota, que o acompanha desde “Acordar para a Vida” (“Waking Life”) ou “A Scanner Darkly — O Homem Duplo”. Pallota é, já agora, também o produtor executivo da série de animação da Amazon “Undone”, por isso muito do aspecto visual pode parecer comum com a série.
“Apollo 10½: Uma Infância na Era Espacial” é uma belíssima ode visual que teve na base da sua criação uma equipa de cerca de 150 pessoas a trabalhar nos vários elementos de animação, que foi feita à mão embora recorrendo a meios digitais.
À semelhança dos projectos iniciais de Linklater ou de “Undone”, o filme recorre à rotoscopia como forma de animação, embora em relação aos títulos de Linklater se note muita distância devido à evolução a que a técnica esteve sujeita, dado já terem passado algumas décadas.
Aquilo em que “Apollo 10½: Uma Infância na Era Espacial” pode parecer pecar é em muito resgatado pela belíssima viagem visual da sua animação, que não se atém a um único estilo e mostra, por exemplo, a reconstrução de imagens da televisão da época de uma maneira e as imagens da vida diária de Stan de outra completamente diferente.
Essa diferença é especialmente vincada na utilização da paleta de cores e nas tonalidades de fundo. A vida de Stan é retratada normalmente em tons de rotina, num sépia que parece fazer desmaiar todas as restantes cores, muito monótono e sem grande imaginação.
As restantes imagens são mostradas com desenho de mão mais livre e abstracta e o espaço é, talvez, o ambiente em que tudo é mais nítido e vívido, incluindo os momentos passados a bordo da nave.
A simplicidade de Linklater é, para além de uma sua imagem de marca, aqui totalmente propositada. O objectivo não é inventar a roda, mas retomar a imagem de marca da sua infância e da infância de muitas crianças americanas que viveram o entusiasmo do que representava a corrida ao espaço, alheadas que estavam dos efeitos e bastidores da Guerra Fria.
O filme evita, aliás, quase todas as considerações políticas e, por isso, mesmo quando as aflora está claramente a fazer eco da vida de uma criança pequena e da sua perspectiva do mundo — por isso, não há a intenção de fazer crítica, a não ser que essa surja de forma não intencional.
Fala-se, claro, muito fugazmente sobre a devastadora Guerra do Vietname e de como Stan não percebia porque se enviava ajuda às crianças afectadas pela guerra quando o seu próprio país era responsável pela destruição ocorrida.
Há uma breve referência a uma reportagem que tem o Harlem como pano de fundo, com o jornalista a entrevistar um habitante desse pobre bairro de Nova Iorque acerca da viagem do homem à Lua e obtendo como resposta que esse investimento poderia servir para mudar a vida aos habitantes do Harlem.
Para lá de alguns destes pormenores, “Apollo 10½: Uma Infância na Era Espacial” é quase completamente acrítico e isso não lhe retira a beleza ou o valor intrínseco da sua intenção, já que a intenção não é essa.
Na perspectiva de uma criança, Linklater percorre não só as suas próprias memórias, mas também as memórias de um país e as memórias de uma cidade cuja vida girava quase por completo em torno dos investimentos da Nasa e onde quase todas as famílias tinham a sua ocupação profissional nas instalações daquela agência espacial.
Linklater recorre para isso a um elenco de pessoas reais que inclui, por exemplo, Jack Black, que dá voz ao Stan adulto e narra toda a história. Black, para além de ter trabalhado com Linklater em “Morre… e Deixa-me em Paz”, tem também uma ligação distante à Nasa, já que sua mãe foi engenheira da agência.
Para além de Black, que não chega a aparecer em cena, o elenco inclui ainda Zachary Levi, mas vive muito do talento de estreantes como Milo Coy, ou não tão estreantes, mas muito promissores como Natalie L’Amoreaux, que dá corpo à mais interventiva dos irmãos de Stan, Vicky.
“Apollo 10½: Uma Infância na Era Espacial” é uma bela ode a uma época, sob a forma de uma fascinante e ambicioso projecto de animação que tem tudo a ver com o espírito de celebração, entrega e colaboração que caracteriza o realizador.
Não é por acaso que Richard Linklater se junta a nomes com os quais já tem a familiaridade e proximidade que um projecto como estes requer, para além de isso já fazer parte do próprio percurso do realizador.
O que “Apollo 10½: Uma Infância na Era Espacial” propõe ao espectador é uma viagem ao espaço através da imaginação das crianças, isenta da poluição que a vida adulta necessariamente acaba por trazer. É uma celebração de tudo o que faz da infância a constante descoberta do prazer nas coisas mais pequenas.
No caso de Stan, é ir à praia, onde também se estacionava o carro directamente sobre a areia, e antes de regressar ter de desengordurar os pés das manchas de óleos provenientes do oceano; entrar em casa imediatamente depois de uma pulverização de DDT; ingerir bebidas a partir de latas que podiam literalmente arrancar um pedaço da língua e, no meio de todos os perigos, encontrar aí a raiz da felicidade.
“Apollo 10½: Uma Infância na Era Espacial” é uma viagem à História do mundo, dos Estados Unidos, com todos os seus defeitos e virtudes, mas é também uma viagem às memórias de Stan e de todos aqueles que assistem ao filme.
É ainda o filme que relembra que a memória ou a imaginação não são tão objectivas como os planos de uma nave espacial que parte para o espaço e, por isso, constrói uma mini Apollo para conter dentro dela todos os sonhos e expectativas que não cabiam nem cabem na realidade.
O mundo de “Apollo 10½: Uma Infância na Era Espacial” é o das possibilidades e das esperanças, tentando cristalizar momentos que raramente retornam ou que, pelo menos, têm o imenso poder de relembrar que, em tempos, tudo foi possível, até ir ao espaço antes de Buzz Aldrin ou Neil Armstrong.
Classificação: ★★★★