As Crónicas do J-Horror: Episódio IX — ‘Ju-On: The Grudge 2’ (2003)

O Poder Descontrolado de Kayako

Ju-On: The Grudge 2 era um lançamento garantido mesmo antes da estreia do clássico de 2002, não só devido ao sucesso já alcançado pelo franchise, mas também por a obra original de V-Cinema ser prosseguida por Ju-On: The Curse 2.

Por esta altura os títulos de Ju-On tornam-se confusos, uma vez que a exibição de Ju-On: The Grudge, no grande ecrã, serviu de reboot para a saga, ainda que na prática tenha atuado como uma sequela direta. Nesse sentido, Ju-On: The Grudge 2 é, para todos os efeitos, o quarto filme do franchise, que prossegue a jornada de Kayako numa história já projetada ao longo de 10 anos.

Contudo, esta obra seria diferente das que os fãs já se haviam acostumado. Apesar de manter a mesma estrutura antológica e argumento dividido em segmentos, ideias e conteúdos de filmes anteriores não foram reaproveitados aqui, em contrapartida do que se antevia, distinguindo Ju-On: The Grudge 2 das suas pré-sequências. Desta vez, os segmentos são protagonizados pelas personagens: Kyoko; Tomoka; Megumi; Keisuke; Chiharu; e Kayako.

Posto isto, revejamos o conceito:

‘Ju-On, em tradução literal, The Grudge Curse — Uma maldição que nasce devido a uma ira contida por alguém que morre. Essa ira concentra-se no local da morte. Quem atravessar esse lugar será consumido e perderá a vida, nascendo uma nova maldição.’

Kyoko, interpretada por Noriko Sakai, uma atriz grávida conhecida como a ‘Rainha do Terror’, viaja para casa com o seu noivo Masashi (Ayumu Saito) após um dia de gravações, no qual participou num programa televisivo que investiga o sobrenatural.

Subitamente, a maldição de Toshio (Yuya Ozeki) surge por debaixo do volante, assustando-os ao ponto de perderem o controlo do veículo e baterem, resultando na perda do bebé, e Masashi é deixado em coma.

No hospital, Kyoko observa o seu noivo inanimado e ligado às máquinas quando, uma vez mais, Toshio aparece na sua frente e toca-lhe na barriga, um pormenor que é deixado como âncora da história, isto porque, três meses mais tarde, o médico de Kyoko revela-lhe com a maior naturalidade que o bebé está vivo e saudável!

O segmento de Tomoka, uma atriz interpretada por Chiharu Niiyama, começa a viagem temporal tão confusa de Ju-On: The Grudge 2, projetando-nos para o programa que Kyoko participava previamente ao seu acidente, cuja localização para a caça ao sobrenatural é, obviamente, a casa de Kayako!

Este arco estende-se pelo segmento da assistente de produção, hairstyle e atriz Megumi (Emi Yamamoto), e de Keisuke (Shingo Katsurayama), o realizador do programa, circulando-nos (neste) de volta ao ponto onde o primeiro segmento terminou.

É em Keisuke que o espetador começa a conectar a história, tornando-se já evidente o motivo pela qual a maldição ataca freneticamente cada elemento envolvido nas filmagens, isto até o segmento de Chiharu.

Chiharu é um salto experimental gigante por parte de Shimizu, um que não precisava necessariamente de se envolver com o argumento de Ju-On: The Grudge 2. A personagem titular aqui é uma adolescente aspirante a atriz, e a única (além dos antagonistas) que apareceu tanto neste filme, como em Ju-On: The Grudge. Apenas os espetadores que se recordam bem das personagens do primeiro filme cinemático irão reconhecer Chiharu, uma vez que esta apenas participou brevemente no segmento de Izumi, como uma das adolescentes que foi visitá-la quando esta sucumbiu à loucura da maldição.

Shimizu ao longo da saga ganhou o hábito de conectar subtilmente pontos narrativos entre filmes, dando um senso de continuidade à história, e nesta instalação, essa ligação é feita por Chiharu. O seu arco, no entanto, é apenas uma side story que se cruza com o arco titular em um ou dois pontos do filme.

Chiharu, que nunca havia entrado no covil da maldição, vê-se envolvida num complexo jogo psicológico, no qual Kayako se diverte a projetá-la do set onde trabalha para a casa amaldiçoada e a trazê-la de volta. Isto continua num loop interminável de uma realidade distorcida, sem motivo aparente, e transporta-nos para um mundo de sonhos indecifrável que transmite um senso de angústia, impotência, e intensidade crescente, deixando Kayako absolutamente fora de controlo.

Apesar da genialidade da execução deste segmento (não abstendo a parte em que uma bola de futebol se transforma na cabeça de Toshio (spoiler!)), no que concerne às regras estabelecidas pelo conceito de Ju-On, estas são aqui quebradas, por Chiharu nunca ter entrado na casa, previamente.

Takashi Shimizu explicou que o objetivo deste segmento fora não só satisfazer o seu desejo por construir uma história surreal com uma realidade incerta, como estabelecer que basta as pessoas ouvirem falar da Kayako para ficarem automaticamente amaldiçoadas.

Para todos os efeitos, apesar das fortes críticas à ‘lógica’ da narrativa, a verdade é que à 16 anos atrás esta porção traumatizou-me mais do que qualquer outra no filme. Recordo-me em criança de apenas querer que o pesadelo terminasse porque era insuportável o terror que aquela casa inalava, e suores frios e alívios intercalavam-se por entre o set em pleno dia, e a escuridão do domínio da maldição.

O objetivo de me aterrorizar foi concretizado, mesmo que abstido de lógica, e é uma crítica compreensível, pois a verdade é que este arco não acrescenta muito à história e está demasiado embrulhado para o seu próprio bem.

Apesar da vertente experimental e loucuras do filme, Shimizu certifica-se de que a história remonta à protagonista, neste caso, no último segmento, o de Kayako, em que a âncora deixada pela gravidez de Kyoko é levitada.

Há duas novas tendências que se destacam em Ju-On: The Grudge 2.

Pela primeira vez no franchise encontramos uma personagem, em Kyoko, que demonstra um razoável character development, algo que faltou a Rika em Ju-On: The Grudge, não só pela maneira como o filme acaba (que não será aqui revelado), como o facto de estar mais centrado na protagonista do que na antagonista.

Todos os segmentos, com a exceção de Chiharu, desenvolvem a história em torno de Kyoko, o seu trabalho, e as tragédias da sua vida pessoal.

Esta evolução aparente no storytelling de Shimizu proveio, em parte, do objetivo de se distanciar do trabalho que desenvolvera nas instalações anteriores, criando uma sequela singular que expande o universo da maldição, complementada pela tentativa de alcançar um novo público.

Após um estudo realizado aos resultados de Ju-On, concluiu-se que a maioria da audiência era masculina, e por esse motivo, Shimizu quis, com este, criar uma história apelativa para um público-alvo mais feminino, um objetivo que lhe serviu muito bem.

Para isso, um dos temas desenvolvidos é a questão da maternidade. Kyoko, como atriz veterana e futura mãe, é uma personagem muito respeitada, a nível profissional, por Keisuke e a restante produção, e também a nível pessoal, servindo como inspiração para atrizes como Tomoka e Megumi.

Ao mesmo tempo, a narrativa estabelece um paralelo entre Kyoko e o seu bebé, e Kayako e Toshio. É a única personagem que consegue simpatizar com a tragédia de Kayako, criando um forte simbolismo de amor materno e cementando Kyoko como uma das personagens mais ricas de Ju-On. Isto acontecesse graças a um trabalho memorável de Noriko Sakai e, como não poderia faltar, de Takako Fuji como Kayako.

Essa memorabilidade acresce com a cinematografia e banda sonora, que inclui, uma vez mais, um trabalho impecável de Shiro Sato (Ju-On: The Grudge), regressando com o tema principal de Ju-On — uma composição de piano triste, pausada e inquietante. No seu restante, intensas explosões graves e agudas misturam-se pelos inúmeros jump scares e um tom melódico recorrente destaca-se, traçando sons de composição dramática que ampliam o ângulo de tragédia e a sensação de impotência predominantes neste filme. Para não romper esta cortina, a parcela psicadélica que se alternava na antiga banda sonora é aqui removida.

Na fotografia, de Tokusho Kikumura, encontramos uma característica predominantemente claustrofóbica, em consequência da escolha de cenários, na sua maioria curtos e apertados. Esta escolha obriga a colocação de ângulos de câmara incomuns, alimentados por uma edição que, numa primeira instância, dá a sensação de desencontro entre o som e imagem, mas que não é o caso. Tal característica é consequência das complexas cenas em que a Kayako assassina pessoas entre espaços temporais interlaçados (no mesmo segmento), obrigando-nos a prestar atenção ao detalhe.

Como parte das inovações de Ju-On: The Grudge 2, podemos observar novos métodos de caça da maldição, que incluem uma perspetiva POV da perseguição das vítimas, o uso do seu cabelo como arma de chacina, a inovação do uso das tecnologias como catalisadores de medo, e um contorcer menos butoh e mais desfragmentado.

O uso de efeitos especiais nos movimentos de Kayako torna-a mais idêntica a demónios de filmes sobrenaturais norte americanos — afinal, por esta altura Shimizu preparava-se para realizar o remake da sua própria obra, The Grudge (2004).

A urgência em desenvolver os seus poderes volta a criar a mesma lacuna comum na saga Ju-On, que passa pelas inconsistências do argumento, e que se refletem no formato puzzle e nos saltos temporais. Mais do que nas obras anteriores, aqui são difíceis de situar, obrigando a uma atenção minuciosa ao detalhe para acompanhar a história, o que vai dividir o espetador entre o desejo por jump scares e a procura de consistência na narrativa.

Sabemos que Kayako não descrimina na escolha de vítimas mas já não é tão aparente o que a motiva. Para alguns espetadores esta será uma das maiores críticas à Kayako e a forma de como as persegue.

Contudo, há uma reflexão a fazer e à qual já dei ênfase no episódio VIII.

Kayako enquanto viva divertia-se a perseguir o Sr. Kobayashi e a escrever desejos estranhos no seu diário, assim como a arranjar formas inovadoras de estar com ele, tirando partido das suas fraquezas, e a sua obsessão em Ju-On: The Curse torna-se desconcertante relativamente rápido.

Se ponderarmos essa motivação, continua a fazer sentido o facto de Kayako ser crescentemente metódica e capaz de utilizar as formas mais complexas e inexplicáveis para acabar com as suas vítimas, ainda que esta explicação não seja aparente ou confirmada!

Sendo este o último filme de Takashi Shimizu na história original de Ju On, é compreensível que tenha ficado por aqui, pois a forma como encerra sugere que uma sequela apenas poderia conduzir a história a um beco sem saída ou, à semelhança de Chiharu, entrar num loop criativo que terminaria sempre no ponto de partida.

Pontuação Final — 8/10

Segue o trailer original de Ju-On: The Grudge 2: