As Crónicas do J-Horror: Episódio V — ‘Ring 0: Birthday’ (2000)

A Tragédia de Sadako Yamamura

Ring 0: Birthday, o último filme da edição ‘The Ring Collection’, apresenta uma antecipada transição na saga Ring, uma que é incrivelmente subvalorizada mas com grande qualidade e merecedora de menção.

Com estreia a 22 de Janeiro de 2000, Ring 0 nasceu da short story Lemon Heart, por Koji Susuki, uma das histórias contadas na antologia Birthday (1999), o terceiro livro do autor na saga.

Com argumento adaptado por Hiroshi Takahashi, foi o primeiro filme no franchise em que o argumentista não colaborou com Hideo Nakata, que recusou a oferta, sendo posteriormente substituído por Norio Tsuruta, o realizador de Premonition.

Gostaria de aproveitar este momento para vos apresentar o famoso vídeo amaldiçoado. Se o vosso telemóvel tocar por favor entrem em pânico!

A história contada nos 99 minutos de rodagem deste retrato íntimo apresenta uma Sadako de 19 anos, e os eventos que levaram ao seu encarceramento no famoso poço, de onde eventualmente sairia sob a forma de uma maldição mítica, oficializando-se como a pré-sequência de Ring (1998).

30 Anos antes de o mundo descobrir a existência do vídeo amaldiçoado, uma repórter chamada Akiko Miyaji (Yoshiko Tanaka) visita a escola que Sadako Yamamura frequentou em criança, com o objetivo de obter informações sobre a mesma e o paradeiro da sua família.

Sem pistas, o único detalhe que apura é o facto de que a menina, então, ter um medo tremendo do oceano, conduzindo a cena inicial ao mar envolto da ilha de Oshima (onde a família viveu), repleto de easter eggs dos filmes anteriores, e visualizamos Akiko em frente ao mar, mar este que em zoom in, mergulha por entre as pálpebras de um olho, belo no momento mas três décadas mais tarde aterrador, seguido de um zoom out e, a seu lado, a revelação do título Ring 0’.

A apresentação do título é um elemento relevante porque define subtilmente o tipo de registo que estamos prestes a assistir. A transição do olho com o algarismo 0 a seu lado relembra exatamente a sua forma geométrica, o que reflete um elemento artístico, e a banda sonora emerge com acordes leves combinados com uma melodia triste, calma, e de imediato, brilhante, assentando o tom para esta instalação, que seria totalmente diferente dos trabalhados cinematográficos desenvolvidos previamente.

Sadako Yamamura (19), abandonada pelo pai após o suicídio da sua mãe muda-se para Tokyo, onde se junta a um grupo de teatro na esperança de se integrar na sociedade e viver uma vida normal. Atuar é terapêutico para ela, que apesar de tratamento psiquiátrico continua a sofrer com os ‘fantasmas’ do seu passado. Visões estranhas dificultam-lhe o dia-a-dia e a relação com outras pessoas sofre por acréscimo.

Esta estranha aura que ronda a Sadako transparece, isto porque membros do grupo de teatro sentem uma tensão estranha sempre que está presente, combinado com pesadelos comuns entre si, que revelam um poço e uma casa abandonada. Esta tensão agrava-se quando Aiko, a atriz principal, morre misteriosamente durante um ensaio (da mesma maneira que todas as vítimas da maldição). Na sequência, Sadako assume o papel de Aiko na peça e a equipa fica revoltada, porque julgam que ela, de algum modo, é responsável pelo incidente, com a exceção do diretor de som, Toyama (Seiichi Tanabe), que a admira e não acredita nas suposições dos colegas, e o encenador Shigemori (Takeshi Wakamatsu). No entanto, não demoraria muito até conhecerem os perigos do contacto com a nova atriz principal.

A apresentação de Sadako como uma rapariga inocente, conduzida por um passado trágico que a assombra, cria aqui uma forte dualidade que torna a personagem rica e paradoxal. Essa dualidade reflete-se em mais pontos. Em primeiro na personalidade, em segundo na relação do seu poder sobrenatural com a ciência e tecnologias, e em terceiro nós, o público, no sentido de, por esta altura, já conseguirmos antecipar o que está para vir, colocando-nos no centro de um conjunto antagónico de emoções; por um lado entendemos perfeitamente o sentimento dos horríveis colegas da Sadako, vítimas dos efeitos da sua maldição, mas por outro também estamos do lado dela, que se apresenta como uma rapariga de bem, que só se quer integrar mas que não controla o que se passa.

Isto acontece em parte devido à impecável interpretação de Yukie Nakama como Sadako Yamamura, que é uma atriz linda, com cabelos esbeltos, negros, lisos e longos, a um passo de se colocarem à frente dos seus olhos e tornarem-se aterradores! A sua linguagem corporal diz muito sobre o que ela se tornaria, para não falar do vestido branco que eventualmente trajaria. No momento em que o coloca sabemos que o puzzle está prestes a tomar forma, percebemos imediatamente o terror que se aproxima numa viagem só de ida, e só podemos conter a ansiedade por breves momentos, até o conjuntos de desfechos nos atingir.

Yukie Nakama desempenha muito bem a personagem num guião sólido, carregando o filme com facilidade (pelo menos aos nossos olhos), e faz-nos torcer por Sadako, desejando que tudo corra bem embora o destino inalterável já esteja integrado nas nossas mentes (suponho que, com certa ironia, seja esta a ‘maldição’ das prequelas). É o cast perfeito!

Esta longa-metragem apresenta uma narrativa imperativamente catártica, com um senso de tragédia crescente mas ao mesmo tempo, uma sensação de calma no passo da história, atuando mais como um drama com ligeiros elementos de terror. Esses elementos distribuem-se ao longo da narrativa de maneira subtil, com um terror que mantém a tensão visual mas que não se excede com jump scares resguardados por uma banda sonora bombástica; esta é calma, triste, subtil e, novamente, brilhante, contribuindo para a característica singular que é a arte de Ring 0 e a calma da personalidade da Sadako. Aqui, o trabalho de Shinichiro Ogata na banda sonora é notável e acresce à visão de Norio Tsuruta, íntima e necessária, que apesar de uma cinematografia (de Takahide Shibunashi) não tão poderosa como a de Jun’ichirō Hayashi (Ring), e um sound design que em partes relembra anime, pouco prejudicam o filme.

Outro elemento que merece uma menção honrosa é a produção, que aqui se destaca pela sua singularidade neste universo. Sendo que o espaço temporal situa-se entre 1968 e 1969, a produção reflete um guarda-roupa e hairstyle da época, em adição aos magníficos cenários apresentados. O estúdio onde ensaiam, os bastidores encolhidos, o pequeno anfiteatro, o regresso a território familiar, e a estética em geral, Ring 0 oferece-nos de tudo um pouco, e estabelece um paralelo entre si e os prévios. As atmosferas sombrias de Nakata derivavam bastante do clima de céu nebulado e conjunto espacial largo e abrangente, ao passo que na obra visual de Tsuruta vemos a nossa querida vilã maioritariamente em espaços confinados e claustrofóbicos que se integram no seu mundo, também pequeno e claustrofóbico.

A maior semelhança entre as obras acaba por ser a tragédia crescente e, por defeito, a Sadako, o que nos trás ao terceiro ato.

Em esforço para evitar spoilers, este ato essencialmente completa a jornada da maldição. É aqui que finalmente conhecemos o Dr. Heihachiro Ikuma (Daisuke Ban), o pai adotivo da Sadako. A sua antecipada aparição é um elemento essencial na saga, e é através dele que obtemos muitas das respostas que procurámos em filmes anteriores, ancorando as poderosas revelações com a performance fantástica de Daisuke.

Apesar deste ato ser um dos melhores no franchise, possivelmente apenas superado pelo terceiro ato de Ring, muitas das respostas que procuramos são vagas, e algumas só podem ser respondidas através de suposição e easter eggs, o que não se pretende neste ponto. Embora justifiquem a grande maioria, saímos de Ring 0 com a sensação de que poderia ter sido mais aprofundado, e é aí que se encontra também a maior falha do filme. A última parte é a melhor, mas é também a mais errática.

Não abstendo das falhas no argumento, é seguro afirmar que os eventos que levaram a Sadako ao fundo do poço não desiludem e são conduzidos a um climax épico, violento, estrondoso, marcante, trágico e aterrador!

Algumas das críticas apontadas passam também pela narrativa, que é bastante melodramática e carece do terror visual desejado por alguns fãs, assim como o facto de terem explorado demasiado a personagem Sadako Yamamura, que aos olhos de alguns, estragou a sua mitologia.

Este é um ponto que mencionei no episódio IV, onde argumentei contra uma situação idêntica, mas irei, de qualquer modo, refutar estes dois pontos. É compreensível o espetador desejar mais terror num filme do género, mas no entanto, reduzir uma história a um só caminho narrativo poderá criar barreiras na sua conceção, que terá de se esforçar por se manter numa linha de medo visual. Redirecionar o filme para uma base de drama e tragédia é importante para a personagem central, porque permite que a sua história floresça organicamente. A sua vida é um drama no qual ela tenta escapar a um possível terror, terror esse que não consegue evitar, terror esse que consome a sua vida. Há algumas semelhanças a Ring nesse aspeto, embora concedo que esse conseguiu manter o horror consistente com a vertente dramática, e é mais assustador, tornando-se então o melhor dos dois mundos, característica crucial num clássico.

O segundo ponto a refutar está relacionado com a exploração da vida e poderes da Sadako. Vê-la como uma pessoa inocente foi algo que não foi bem recebido por alguns fãs, que já desenvolveram uma imagem desta maldição que mata sem misericórdia, e é justo! Para mim, saber quem ela foi só torna a sua personagem mais trágica, porque agora consigo entender melhor a sua dor.

Voltando ao episódio IV, o problema não é dissecarem o passado da Sadako mas sim aprenderem como a contra atacar. Isso a meu ver prejudica mais a sua mitologia do que explorarem os seus poderes, pois não há nada mais aterrador do que avistar uma solução para um problema mas ainda assim ter a perfeita noção de que não há nada que possamos fazer. Essa é a catarse do terror.

Pontuação Final — 8/10

Segue o trailer de Ring 0.