A Maldição de Kayako, em V-Cinema
O universo criado por Takashi Shimizu no final dos anos 90 imortalizou o fenómeno que ficaria conhecido como J-Horror. A mítica personagem Kayako Saeki, juntamente com Sadako Yamamura (Ring), lideraram a nova onda de terror, numa época em que o cinema ocidental do género apresentava maioritariamente slashers como Scream, cujos temos abordados refletiam um cinema de terror já explorado, e aparentemente sem rumo ou alma. Na mesma altura, o próprio terror japonês encontrava-se numa fase estagnada, fase essa que foi quebrada pelo conceito de uma figura feminina com roupas brancas e cabelos negros, olhar aterrador e linguagem corporal contorcida, envolta por uma atmosfera sombria e enervante, que reflete uma cultura profunda e deveras fascinante.
A alma cultural japonesa transportada para este género de terror, primeiro em Ring e mais tarde em Ju-On, reviveram esse género de cinema na época em que mais precisava, com o melhor timing possível. O sobrenatural, lar de demónios e seres do inferno, teria agora um novo significado, sob a forma de maldição, resultado de tragédia inconcebível e imperdoável, e um conceito mítico nasceria desta abordagem:
‘Ju-On, em tradução literal, The Grudge Curse — Uma maldição que nasce devido a uma ira contida por alguém que morre. Essa ira concentra-se no local da morte. Quem atravessar esse lugar será consumido e perderá a vida, nascendo uma nova maldição.’
Este conceito tão simples, com a visão de Takashi Shimizu, transformou o que foram inicialmente duas curtas-metragens num universo numerosamente replicado na cultura pop, contando até 2020, com 13 filmes, 3 curtas, 1 série, variadas mangas e obras literárias, e até mesmo um jogo para a Wii!
Antes de analisar Ju-On: The Curse é essencial um enquadramento e reflexão na origem.
Para a criação de The Curse, Takashi Shimizu inspirou-se nas performances de grupos de dança Butoh, que em criança, assustavam-no profundamente. Butoh é um estilo de dança peculiar criado no Japão do pós-guerra, e que consiste em variadas contorções e pintura corporal, com movimentos de vanguarda repletos de um intenso expressionismo e surrealismo.
A primeira exposição das personagens Kayako, a mítica maldição que se contorce e rasteja, repleta de sangue, com barulho gutural e paralisante; assim como o seu filho, Toshio, uma criança pálida de olhos esbugalhados, que mia como um gato assanhado, foram apresentados pela primeira vez na antologia de terror ‘School Ghost Story G’. Este filme, lançado em 1998, integra o formato V-Cinema, que é o equivalente a um lançamento direto em DVD, mas na televisão. Esta plataforma, no Japão, permite aos realizadores uma maior liberdade criativa no seu trabalho, pelo que muitos não fazem a transição para o grande ecrã.
As duas curtas vão pelo nome de Katasumi (In a Corner) e 4444444444, e foram ambas escritas e realizadas por Takashi Shimizu. A primeira abre com duas adolescentes a alimentarem os coelhos de uma escola, num dos cantos do edifício. Enquanto alimentam os coelhos uma das meninas corta-se num dedo, ausentando-se de seguida, possivelmente para procurar um penso. Quando regressa, a amiga (Hisayo) já lá não se encontra, e é nesse momento que Kanna (nome que viria a ser revelado em The Curse), se apercebe de uma presença que espreita atrás de uma árvore na retaguarda, revelando, pela primeira vez, Kayako, rastejando ao seu encontro e contorcendo-se. Kanna, paralisada de medo, mantém-se imóvel e, nesse momento, Hisayo surge por debaixo de uma das gaiolas dos coelhos, morta, terminando assim a curta.
4444444444 (Ten Fours) passa-se na mesma escola, onde um rapaz chamado Tsuyoshi (nome também revelado em The Curse) passeia de bicicleta no terreno escolar quando, de repente, ouve o toque de um telefone, telefone esse que encontra por detrás de eletrodomésticos abandonados, e decide atender a chamada. Ao pegar no aparelho, observa o contacto, que revela o conjunto numerário 4444444444. Assim que atende, a voz de um gato a miar invade os seus ouvidos, e Tsuyoshi senta-se, confuso, tentando explicar ao remetente que o telefone não é seu e pergunta se quem está do outro lado consegue ouvi-lo. Nisso, uma voz à sua esquerda diz ‘Sim’, revelando um menino literalmente branco, de olhos esbugalhados, que começa a miar freneticamente.
De todas as curtas apresentadas em ‘School Ghost Story G’, as que mais se destacaram foram precisamente as de Takashi, de modo que, Kiyoshi Kurosawa, o famoso realizador de filmes J-Horror (‘Sweet Home’, ‘Cure’, ‘Pulse’), na época mentor de Takashi, adorou o seu trabalho, e por isso ajudou-o a garantir a produção de um projeto maior, no qual pudesse desenvolver os seus antagonistas, solidificando-se as curtas como a pré-sequência direta da longa-metragem que seguiria.
E assim nasceu Ju-On: The Curse, em 2000, com o formato 3:4 de V-Cinema e 70 minutos de rodagem, com Takashi nas funções de argumentista e realizador, e liberdade criativa para desenvolver como quisesse as suas personagens.
Sublinho que esta versão é pouco conhecida pelo público geral. Após este filme, foi lançado Ju-On: The Curse 2, também no formato de V-Cinema, e só dois anos mais tarde, em 2002, o mundo conheceria Ju-On: The Grudge, desta vez no grande ecrã, sendo posteriormente produzido um remake ocidental, em 2004, intitulado The Grudge.
The Curse apresenta-se como um conjunto de seis histórias (ou segmentos) com espaços temporais diferentes que se entrelaçam numa única narrativa, como peças de um puzzle, e no início de cada é revelado o nome da personagem central desse arco. Essas personagens são, Toshio, Yuki, Mizuho, Kanna, Kayako e Kyoko.
Takeo Saeki (Takashi Matsuyama) assassina brutalmente a sua mulher e filho, Kayako e Toshio, em sua casa, uma pequena vivenda de dois andares nos subúrbios de Tokyo, criando uma maldição que se aninha no local. Após a crescente ausência de Toshio, o seu professor, Shunsuke Kobayashi, interpretado por Yūrei Yanagi (Ring 2), visita a família na esperança de perceber o que se passa. Lá, encontra uma casa suja e desarrumada, e o seu aluno repleto de feridas e nodoas negras (mas não pálido), aparentemente sozinho. Com a câmara agora numa visão mais periférica da casa, pode-se observar Kayako a emergir subtilmente no andar de cima, enquanto Toshio mia no andar de baixo, ao lado do seu professor.
A câmara corta de seguida para um ecrã negro, revelando o nome Yuki, e regressa de novo à mesma casa, agora habitada pela família Murakami, da qual fazem parte Kanna e Tsuyoshi, os dois adolescentes, aparentemente irmãos, que participam nas curtas Katasumi e 4444444444, e a quem Yuki ajuda com os trabalhos de casa.
A personagem titular do terceiro arco, Mizuho apresenta-se como a namorada de Tsuyoshi e procura-o na escola onde as prequelas se desenrolam, e sobre Kyoko, a última personagem central, falaremos no episódio VII, onde irei analisar Ju-On: The Curse 2.
The Curse apresenta uma narrativa bastante fragmentada e altamente centrada nas personagens antagonistas, e por isso, é essencialmente um filme de exposição, ou antologia se preferirem, em oposição de uma história desenhada ao longo de três atos. Aqui é vívida e crua a visão de Takashi, que se dedica a apresentar Kayako da forma mais terrífica possível, e a sua paixão furiosa transparece. Contudo, para a audiência que assiste pela primeira vez a esta longa-metragem, será mais difícil localizar a ação no espaço temporal, sendo esta uma das maiores críticas a The Curse, em adição ao character development e produção.
Mesmo com essa perceção, Takashi Shimizu investiu os seus recursos na apresentação do conceito, execução e estética, o que se tornaria o ponto mais icónico do franchise.
Sendo o tal conceito tão fresco na cultura japonesa do virar do século, Takashi teve aqui a sua oportunidade de ouro. Segmentos deste filme viriam a ser reaproveitados nos filmes que se seguiriam e até em paródias, numa época em que Kayako caminharia ao lado de Sadako na cultura pop. A imagem da Kayako a descer as escadas banhada em sangue e contorcendo-se tornar-se-ia, uns anos mais tarde, quase tão popular como a Sadako a sair de uma televisão.
O formato puzzle do argumento reflete muito sobre a visão de Takashi Shimizu e a forma de como constrói narrativas, posicionando pequenos detalhes que poderiam escapar da nossa compreensão numa primeira instância, mas mais tarde, quando menos damos por isso, completam os arcos da história. Ações de certas personagens que não entendemos inicialmente acabam por fazer sentido mais tarde, mesmo que em filmes diferentes, e isso é apenas um dos contrastes narrativos de Ju-On, um tópico ao qual retornarei no episódio VIII, a análise a Ju-On: The Grudge (2002).
Relativamente às lacunas de Ju-On: The Curse, embora o design do argumento seja criativo, a verdade é que as personagens envolvidas além dos antagonistas pouco importam para o desfecho da história, este é o mundo de Kayako Saeki, pequeno e simples. Não há uma perceção clara de quem é o protagonista, e seja como for o tempo de cada um no ecrã é reduzido, o que reflete uma carência de character development.
Sendo esta uma produção de baixo orçamento num formato limitativo para a estética do cinema de terror, a cinematografia de Nobuhito Kisuki, apesar da atmosfera claustrofóbica, sofre com as limitações do pequeno ecrã, a banda sonora de Geirî Ashiya, embora intensa nos momentos certos não tem a mesma vida que Shiro Sato traria em 2002 (Ju-On: The Grudge), e o mesmo se pode dizer da edição, que nos jump scares é efetiva, mas noutros planos revela-se demasiado estática, como se por ausência de câmaras suficientes, ou apenas por experimento. Este será o ponto mais desafiante para audiências que assistem a Ju-On: The Curse pela primeira vez, nos dias de hoje.
Por outro lado, a performance cicatrizante de Takako Fuji como Kayako Saeki, combinada com os jump scares, estética, atmosfera, e passo narrativo, foram o suficiente para uma calorosa receção a The Curse, galardoando Takashi Shimizu, dois anos mais tarde, com a oportunidade de refazer a sua obra no grande ecrã.
Pontuação Final — 6/10
Segue um trailer fan made de Ju-On: The Curse: