As Crónicas do J-Horror: Episódio VIII — ‘Ju-On: The Grudge’ (2002)

O Terror Puro de Kayako Saeki

Ju-On: The Grudge, a obra-prima de Takashi Shimizu, foi lançado em 2002, em consequência do sucesso do conceito que criara em V-Cinema, sob a forma de Ju-On: The Curse. Com um aumento de orçamento e o formato widescreen de 16:9, imperativo para um terror desta envergadura, Shimizu ganhou aqui uma oportunidade de ouro para contar a história de Kayako no grande ecrã, a qual capitalizou com distinção.

Esta é a versão de Ju-On que traumatizou uma geração de fãs de terror, ainda antes do seu remake, em 2004 (The Grudge), e a sua receção foi tal que não demoraria muito a caminhar lado a lado com o épico Ring, no topo da lista de filmes asiáticos mais influentes para o cinema do género.

Enquadrando mais uma vez nestas crónicas o conceito de Ju-On, a jornada da maldição caracteriza-se da seguinte forma:

‘Ju-On, em tradução literal, The Grudge Curse — Uma maldição que nasce devido a uma ira contida por alguém que morre. Essa ira concentra-se no local da morte. Quem atravessar esse lugar será consumido e perderá a vida, nascendo uma nova maldição.’

Logo na abertura sentimos uma diferença extraordinária na atmosfera do filme, e não demoramos muito a perceber que Takashi Shimizu está agora a investir todos os seus recursos em apresentar-nos uma história inquietante e distinta. Há algo que resulta, simplesmente.

A cena inicial surge como um flashback, transportando-nos ao momento em que Takeo Saeki, ao desconfiar que Kayako está a ter um caso, explode com uma raiva psicótica, assassinando brutalmente a sua esposa, juntamente com o gato e o seu filho, Toshio.

A decisão de Shimizu em revelar estes acontecimentos na abertura foi de extrema inteligência, podendo assim abster-se de rodar a história para este ponto num terceiro ato, que seria, em parte, inexistente aqui, outra característica singular do franchise.

Estamos de novo perante um filme estruturado em seis segmentos, com espaços temporais diferentes que se entrelaçam numa única narrativa, como peças de um puzzle, e no início de cada é revelado o nome da personagem central desse arco. Essas personagens são Rika, Katsuya, Toyama, Izumi e Kayako.

Cerca de 5 anos após os eventos de The Curse, Rika, uma assistente social interpretada por Megumi Okina, é destacada para assistir Sachie Tokunaga (Chikako Isomura), uma idosa que vive com o seu filho e nora, numa vivenda nos arredores de Tokyo. Ao chegar, pressente de imediato que algo está errado, pois encontra uma casa desarrumada e com uma atmosfera inquietante, como se o ar fosse mais pesado do que o exterior. É um desconcerto que a invade assim que atravessa o portão.

Na casa, encontra Sachie rastejando pelo chão com ar adoentado e infeliz, e o estado da propriedade sugere que há algum tempo que carece de limpeza.

Por entre as suas tarefas, Rika descobre, no quarto dos Tokunagas, um roupeiro selado com fita adesiva, e por dentro uma criança com um gato preto no colo. Por entre o pânico de tal presença não prevista e o silêncio voluntário de Sachie, é recebida uma chamada de voz no telefone de casa, por Hitomi, (pormenor importante de mencionar aqui). Após escutar, Rika é surpreendida uma vez mais pela presença da criança, que revela o seu nome, Toshio, e momentos depois, pelo espírito de Kayako, paralisando-a de medo até cair em desmaio.

Katsuya apresenta-nos a família Tokunaga, constituída pelo próprio (Kanji Tsuda), a sua esposa Kazumi (Shuri Matsuda) e a sua mãe, Sachie, a viverem na casa amaldiçoada, desfragmentando a ordem cronológica dos acontecimentos.

Numa primeira instância, é desafiante situar o espaço temporal, mas pela altura em que o terceiro arco desembarca, torna-se evidente. Hitomi, a irmã de Katsuya, após algum tempo sem saber nada do irmão, é avistada no local de trabalho a deixar uma mensagem de voz à sua família, a mesma que Rika ouvira no primeiro arco.

Neste momento o puzzle começa a tomar forma, e o arco que segue é um dos mais populares do franchise e uma demonstração imaculável de terror perfeito, e por esse motivo, é imperativo um relato passo a passo dos eventos aqui presenciados. Hitomi (Misaki Ito) apresenta um realizador no topo da sua forma e a cementar o seu legado como mestre, pois Shimizu é especialista em terror subtil, e sabe como construir a tensão e catarse necessária para um clássico intemporal. O que segue contém spoilers.

Hitomi, que já havia entrado na propriedade do seu irmão, dirige-se a uma casa de banho quando sente alguém a rastejar atrás de si. Apesar de nada avistar, o mesmo barulho persegue-a até uma das cabines. Lá, vê uma sombra a deslocar-se por debaixo da porta, colocando-se na cabine ao lado. Dentro, recebe uma chamada de retorno do seu irmão e, ao atender, é surpreendida pela voz gutural de Kayako ao telefone, desligando a chamada. Hitomi sai da casa de banho mas o seu porta-chaves cai ao chão, e ao baixar-se para o apanhar, o cabelo negro de Kayako destaca-se pela porta da cabine.

Assustada, abandona o porta-chaves caído e corre ao escritório do segurança, que por sua vez se dirige à casa de banho em causa. Através da gravação da câmara de vigilância, observa a sombra de Kayako a arrastar o homem para dentro da divisão e, perplexa, foge para casa.

Já no seu prédio, entra pelo elevador, com uma porta parcialmente em vidro que revela o exterior. Fechando os olhos e suspirando, como nós o fazemos no fim de um daqueles dias inéditos de trabalho, aguarda que o elevador suba até ao seu andar. Com a câmara em posição periférica e banda sonora de tensão crescente, observamos em cada andar o menino Toshio à frente da porta, antecipando um grande susto quando o elevador parar. Enfim, chega ao seu destino e nada acontece, aumentando os nossos nervos.

Já em casa, Hitomi procura relaxar enquanto pondera as anormalidades que transpareceram diante dos seus olhos. O mundo alivia sempre que chegamos a casa, há um decréscimo imediato na ansiedade do quotidiano. Esse breve momento permanece até receber uma chamada do irmão, agora sem barulho assustador, mas apenas a voz calma de Katsuya (já morto nesta altura), a comunicar-lhe que se encontra na entrada do prédio. A irmã abre-lhe a porta, e nem dois segundos depois ouve o barulho da campainha, já cá em cima. Ao espreitar pelo buraco da porta, vislumbra o irmão, abrindo-a em histerismo, mas não há lá ninguém. O pânico aumenta e ela desespera, a voz de Kayako regressa ao telefone e Hitomi corre para o seu quarto, escondendo-se por baixo dos lençóis, de luz acesa.

Aqui, uma sequência de terror já muito sólida progride rapidamente para um final absolutamente estrondoso e épico.

Aconchegada, liga a televisão. Imagino que para quem assiste a este filme um sentimento relacionável e nostálgico surge neste preciso momento. Depois de vermos um filme de terror que nos deixa ansiosos e com suores frios, já todos nos colocámos debaixo dos lençóis e de luzes acesas, quando não conseguimos enfrentar o escuro silencioso e convidativo para fantasmas e seres que nos tiram o sono, e aqui é que se torna interessante!

A Hitomi liga a TV, e o programa simpático a que assiste distorce-se, revelando por entre fragmentos do ecrã um ruído desconcertante com a imagem da Kayako, que se intensifica e desliga o monitor abruptamente. A luz permanece acesa. A vítima cobre-se totalmente com o cobertor, tremendo como se despida numa região gélida, e algo aterra na sua mão — o porta-chaves que se havia desprendido na casa de banho, seguido de um vulto que cresce por debaixo dos lençóis no fundo da cama, ao som de uma evolutiva banda sonora psicadélica e atmosfera prestes a explodir.

De todos os sítios por onde um espírito poderia sair, nunca imaginamos que seja por dentro da nossa cama; no mínimo seria ou por debaixo, ou pelo roupeiro, ou pela porta do quarto — no limite dos limites pela televisão (!) — mas nunca por dentro dos lençóis!

E eis que acontece! Kayako revela-se, num dos melhores jump scares de toda a saga de Ju On, e arrasta a pobre desgraçada para os confins do inferno, com ambas desaparecendo!

O arco de Hitomi é um exemplo de terror perfeito e inclui tudo o que se pode desejar num filme do género: desespero, catarse, melancolia, imprevisto, suspense, tensão crescente, e o desfecho assustador.

Por esse motivo, é importante que sirva como objeto de estudo porque realça a importância do conceito em cinema, principalmente para estudantes de terror. É um exemplo prático de como criar atmosfera, construir e acumular tensão, destacar o design e estética, e procurar com isso criar uma identidade particular. Muitos antagonistas no terror são idênticos ou agem identicamente, e por consequência, a audiência acaba por facilmente esquecer essas personagens. Ao apresentar uma característica e estética próprias, tais antagonistas transcendem.

Outro ponto que se destaca neste segmento é o papel da tecnologia no J-Horror. A maneira como a Kayako utiliza as tecnologias para aterrorizar as suas vítimas, seja pelo telefone ou pelo ecrã de uma televisão, é algo que tem um certo impacto psicológico na audiência e sempre foi um complemento efetivo no terror. Este tópico é de tamanha importância que provavelmente merece um episódio singular no decorrer destas crónicas.

Toyama, personagem titular do quarto arco de Ju-On: The Grudge, é um polícia reformado que terá liderado as investigações iniciais à casa da maldição, e avistamo-lo a brincar com a sua filha Izumi, num parque à frente da sua casa. Aqui, encontramos a primeira inconsistência narrativa nesta longa, uma vez que Toyama (Yōji Tanaka) nunca fora mencionado nas investigações decorridas em The Curse 2.

No entanto, a sua presença, juntamente com Izumi, titular do quinto arco do filme, traria uma reviravolta inesperada a Ju On.

Após o segmento de Toyama há um salto temporal de mais ou menos 5 anos, o que significa que, desde os eventos de Ju-On: The Curse, a história avançou uma década, algo que não nos apercebemos de imediato e que se torna, por consequência, o pedaço do filme mais desafiante de situar cronologicamente.

Izumi (Misa Uehara) tem agora 17 anos e o seu envolvimento conecta Ju-On: The Grudge ao último pedaço de Ju-On: The Curse 2, o segmento da Saori, descrito no episódio VII.

Como esse segmento de apenas 2 minutos é filmado num único ângulo periférico ao domínio da maldição, não revela a cara de nenhuma personagem. Apenas à medida que conhecemos Izumi nos apercebemos que esteve presente na casa e que abandonou o local sozinha, mesmo antes de Saori e as restantes meninas serem assassinadas. Não só Izumi estabelece uma ligação com o filme anterior, como uma das amigas que a acompanha neste, Chiharu, serviria de ponte para a sequela, Ju-On: The Grudge 2, a qual abordarei no episódio IX.

O conjunto de eventos neste arco, em junção com o último, o de Kayako, demonstram que Takashi Shimizu tem aqui uma visão mais bem definida, assim como se sente mais confortável na sua pele em apresentar Ju On de maneira tão complexa, tomando o maior proveito da estrutura desfragmentada tão característica do franchise. Shimizu não tem qualquer problema em reaproveitar sequências dos seus filmes anteriores e fundi-las com o novo material, o que, em retrospetiva, foi a melhor decisão que poderia ter tomado ao escrever esta belíssima instalação da saga.

Ainda, faz um belo trabalho nos detalhes da construção narrativa — ações de algumas personagens ou certas exposições que não entendemos no início, acabam por fazer sentido mais tarde, dando-nos um senso de esclarecimento e fazendo-nos prestar atenção ao detalhe.

Apesar das melhorias, algumas das críticas apontadas a Ju On continuam a dever-se ao desenvolvimento das personagens. Embora esta instalação estabeleça rapidamente que Rika é a protagonista, e é de certa forma ela que tem a maior conexão com Kayako, a sua presença pouco altera o rumo dos acontecimentos, este continua a ser o mundo da maldição, pequeno e simples, o que nos traz a um tópico que já havia mencionado no episódio VI, que são os contrastes narrativos de Ju-On.

Como já mencionado, o fraco desenvolvimento das personagens é algo recorrente até este ponto na saga, e aqui, mais do que em qualquer outra instalação, transparecem. Por outras palavras, o conceito, execução e estética vão colidir em grande parte com as personagens e narrativa.

Ju-On: The Grudge caracteriza-se dessa forma como puro terror, o mais importante é apresentar Kayako e Toshio como espíritos vingativos imparáveis, que não descriminam e não deixam absolutamente ninguém escapar. Com esse propósito estabelecido, pouco espaço sobra para o desenvolvimento das personagens, que é sacrificado pelo terror, isto porque se têm uma forte progressão, a certo ponto poderá significar que encontram formas de contra atacar a maldição. Já havia argumentado contra isto na análise a Ring 2 e Ring 0 (episódios IV e V), em que aprender a contra atacar um antagonista tão assustador poderá comprometer a sua mitologia, mas garantido que nem sempre tem que ser assim.

Há diversas maneiras criativas de criar dinâmicas entre protagonistas e antagonistas neste género, sem comprometer as personagens. Um exemplo perfeito disso é o incrível thriller coreano ‘I Saw The Devil’, de Kim Jee-woon. Contudo, no caso de maldições como Kayako, desenvolver as personagens é algo que falta, de facto, mas o desfecho, de uma forma ou outra, tem que ser trágico e explosivo.

Outro contraste provém do formato puzzle do argumento de Ju On. Em adição ao ponto anterior, certos detalhes ou ações de personagens são posicionados em diferentes segmentos, ou perspetivas, ou até filmes diferentes, o que pode embrulhar demasiado a história, criando por vezes inconsistências difíceis de justificar.

Felizmente, sendo Takashi Shimizu um mestre de terror e criador de uma das personagens mais terríficas no cinema do género, a sua visão, direção e design do argumento, em combinação com a soberba produção de Ju-On: The Grudge, não comprometeu sua obra, que se tornaria viral e um clássico instantâneo!

Para isso, contou com um sólido elenco, com destaque para Takako Fuji, que interpreta mais uma vez Kayako Saeki na perfeição; Megumi Okina, no papel da adorável Rika; e Misa Uehara, que vive Izumi Toyama numa surpreendente performance.

Partindo para os detalhes técnicos, a produção, com menção honrosa a Taka Ichise, produtor de inúmeros clássicos de terror, incluindo a trilogia Ring, Ju On, e Dark Water, é um dos principais motivos pelo qual este filme é absolutamente incrível e singular. Há uma atmosfera inexplicável que só Ju On: The Grudge tem, e isso reparte-se pela cinematografia, que combina uma fotografia bela e um trabalho de câmara cuidado, com ângulos excecionais, a cargo de Tokusho Kikumura; e a edição, por Nobuyuki Takahashi, comparativamente a The Curse e The Curse 2, é consistentemente superior, não só nos jump scares como entre cenas chave.

Outros pormenores que se destacam passam pelo sound design, as vozes de Kayako e Toshio são agoniantes, e complementam-se com a banda sonora de Shiro Sato — horrífica, memorável, triste e pesada, que por vezes muda de tom e torna-se experimental. Desde a depressiva composição de piano do tema principal, a um conjunto de vozes de coro, a um tema crescente de tensão, quase que psicadélico, vemos diferentes efeitos sonoros ao longo do filme, e nenhum nos deixa indiferentes, fazendo-se notar um trabalho cuidado na mistura de som.

Ainda que a estrutura antológica do filme possa confundir a audiência, e por vezes algum contexto e explicação mais aprofundada resultaria, se pensarmos do ponto de vista da maldição, é frequente a Kayako confundir as suas vítimas. Como se em viagem psicadélica, estas são por vezes transportadas para diferentes espaços-temporais, e por isso, de certo modo, faz sentido o espetador ficar também confuso com a narrativa.

O medo é injusto, inexplicável e inclassificável, e a Kayako não ataca sempre na mesma altura ou padrão. Posto isso, é possível colocar a hipótese de que a desfragmentação da história funciona, em suma, como uma experiência imersiva para o espectador. É dos poucos filmes de terror que consegue ‘escapar’ com esse posicionamento narrativo, o que é incrível para dizer o mínimo!

Pontuação Final — 9/10