As Crónicas do J-Horror: Episódio X — Especial Netflix — ‘Ju-On: Origins’ (2020)

O regresso do mítico franchise!

Ju-On: Origins marca o regresso do universo de Ju-On, desta vez numa das maiores plataformas de streaming do mundo, a Netflix, com uma série especial de 6 episódios, sobre um espírito vingativo engaiolado numa casa horripilante, que trás o inferno a todos os que lá entrarem.

Em conjunto com o realizador Sho Miyake e o argumentista Hiroshi Takahashi, que escreveu o eterno clássico Ring (1998), Taka Ichise, um dos mais conceituados produtores de J-Horror, assume a liderança num projeto inovador que testa e demonstra o seu talento como criador, num fenómeno ao qual já é veterano.

O currículo de Ichise está repleto de conquistas, que incluem as funções de produtor na trilogia original de Ring, no êxito Dark Water (2002), Noroi: The Curse (2005), e todos os filmes de Ju-On até aos reboots The Begining Of The End (2014) e Final Curse (2015), os quais também coescreveu (com Masayuki Ochiai).

No marco do franchise em análise, a história contada surpreende-nos logo na cena de abertura, estabelecendo de imediato que os filmes Ju-On foram baseados em acontecimentos reais, que tiveram lugar numa única casa, e reforça que a realidade do que lá sucedeu é muito mais aterradora do que a representada nos filmes.

Esta simples declaração desarma-nos instantaneamente, uma vez que, sendo uma história de origem da maldição, assumimos que iria retratar a ‘origem’ de Kayako, o mortífero espírito vingativo que persegue impiedosamente as suas vítimas num arrasto desconcertante. Kayako e Toshio, na sua íntegra, passam a ficção nesta série.

Ju-On: Origins, à semelhança da obra original, desenrola-se ao longo de vários anos, nomeadamente de 1988 a 1995, e centra-se na vida de 3 personagens cujos caminhos, de uma forma ou outra, remontam à casa amaldiçoada.

Em 1988, Yasuo Odajima (Yoshiyoshi Arakawa), um autor e investigador paranormal, recebe em casa uma cassete enviada por Haruka Honjo (Yuina Kuroshima), uma atriz com a qual participou num programa televisivo sobre o sobrenatural, e na qual contém a gravação de um barulho recorrente de passos e palavras indecifráveis de uma alegada presença no seu apartamento.

Os regulares episódios paranormais forçaram-na a mudar-se para casa de Tetsuya (Kai Inowaki), o seu namorado, que alega que a razão desses barulhos a assombrarem é devido à sua visita a uma estranha casa, com o intuito de a comprar para eles, mas que lá dentro avistara uma presença fantasmagórica de uma mulher com um vestido branco e, presumidamente, um bebé recém-nascido embrulhado nos seus braços.

Em paralelo, conhecemos Kiyomi (Ririka), uma adolescente que se muda para Tokyo com a mãe, e com a qual tem uma relação conturbada. Na escola, é abordada por duas colegas que a convencem a visitar uma casa abandonada com o seu amigo Yudai (Koki Osamura), e entendemos rapidamente que se trata da casa amaldiçoada.

Ao chegarem, podemos antever o que lhes espera, mas no entanto, algo ainda mais doentio aguardaria por Kiyomi, titularizando um tema de violência que se repetiria morbidamente para o resto da sua vida.

Para os fãs do universo de Ju-On, o conceito desta série não é novidade, pelo que durante o desenrolar da história poderão detetar certas semelhanças com a jornada de Kayako, em particular no cruzamento de diferentes espaços-temporais.

Essa comum característica volta aqui a ser explorada, embora de maneira diferente. Há uma complexidade no argumento que acresce ao outrora formato puzzle da narrativa — aqui, a história é contada pela ordem correta de acontecimentos, mas em certos pontos, seja por flashbacks ou por consequência dos poderes da maldição, eventos desenrolados em anos diferentes cruzam-se em tempo real.

É uma rúbrica já explorada na saga que acaba por embrulhar ligeiramente a narrativa, visto que observamos personagens de espaços-temporais diferentes a interagirem singularmente no mesmo local, e também, numa instância mais tardia da série, certas questões são deixadas por responder, perpetuando a possibilidade de uma segunda temporada.

Este desenrolar de acontecimentos pode inicialmente confundir a audiência, mas é um desenvolvimento que combina efetivamente com o tipo de storytelling já comum na saga, e impede que a história entre numa espiral da qual não consegue sair, algo em que Taka Ichise entrou, em Ju-On: The Final Curse.

Outra vertente que acresce valor à saga é o desenvolvimento de personagem, que aqui é maior do que provavelmente em qualquer instalação registada até agora.

Yasuo procura compreender por que motivo se dedica tanto ao paranormal, e por que razão a sua infância permanece oculta, cementando a sua jornada de recordação como um pilar essencial para o desenvolvimento da trama, pilar esse que é levitado por Haruka, que decide levar o caso até ao fim a custo de grande perda.

No papel de antagonista, a Mulher de Branco (Seiko Iwaido) atua mais como uma maldição que influencia as pessoas e as suas ações, algo que a Kayako também fazia esporadicamente mas que aqui é um mote primário. Através disto observamos personagens que alteram completamente quem são e vêm-se arrastadas para situações que escalam numa catarse sem controlo, como é o caso da Kiyomi.

Há um forte comentário social associado a esta personagem, que reflete as influências trágicas da vida real na série. Durante os anos 80 e 90, houve uma onda de casos violentos registados no Japão (não relacionados entre si), que muitas vezes envolviam a tortura, rapto e assassinado de mulheres e crianças. Esta transparência é dividida por cada episódio, onde nos é apresentado o ano em que a ação se passa, e a certo ponto avistamos uma personagem a ver as notícias, que retratam tais acontecimentos.

No caso de Kiyomi, há uma reflexão realista associada à violência sexual que a sua personagem sofre, em adição à maldição da Mulher de Branco. O sexo e o deboche de uma vida desfeita tornam-se parte do seu mundo, mundo esse ao qual não consegue escapar, mundo esse que a rodeia insidiosamente.

Outra imprevisível característica passa pela quantidade de gore que testemunhamos. Há aqui uma apresentação definitivamente diferente da plasticidade típica de Ju-On, isto porque Takashi Shimizu, na obra original, concentra-se mais na ideia de sugerir atos de violência, emvez de detalhá-los. Ichise ao retratar Origins como uma história inspirada em acontecimentos reais, com a vertente grotesca e humana, a violência e a loucura tornam-se o método de terror principal.

É também nesta série que assistimos a um dos mais atrozes atos de violência no terror dos últimos anos, e há medida que mais famílias se começam a comportar estranhamente após um direto ou parcial envolvimento com a casa amaldiçoada, mais começamos a ver um padrão nos chocantes desfechos que procedem, mesmo que pouco evidente. Essa violência é de um tão intenso grafismo que remonta a alguns dos trabalhos mais sangrentos e grotescos do J-Horror, como Ichi The Killer, o louco e polémico filme de Takashi Miike, e que se manifesta por entre a recorrente combinação de sexo e violência.

Apesar da complexidade do argumento, cada episódio tem apenas cerca de 30 minutos, apresentando um passo narrativo de slow burn que transforma a série, primeiramente, num drama temperado com elementos de terror, mas que não arrasta demasiado a história, e compensa-nos rapidamente de maneira perfurante e explosiva.

Sho Miyake faz um bom trabalho em criar tensão e a definir o passo de cada cena, não se esticando com jump scares despropositados, até porque aqui seria um erro, tendo em conta a antagonista, o que nos trás a um dos pontos menos positivos de Ju-On: Origins.

Kayako Saeki, como um dos espíritos vingativos mais memoráveis da história do terror, é uma personagem difícil de acompanhar, especialmente porque é de imediato estabelecida uma comparação entre ela e a Mulher de Branco, criando automaticamente uma desvantagem para esta. Adicionalmente, na apresentação do sobrenatural, Takashi Shimizu é um mestre — há uma subtileza no posicionamento da maldição, em cantos escuros das extremidades da imagem, juntamente com o modo como o se desloca e revela nas sombras, e até mesmo na execução dos jump scares, que torna o seu conceito muito singular.

É aqui que Sho Miyake encontra o seu maior desafio. A subtileza com que procura, em certas cenas, revelar a maldição, não transparece com a mesma originalidade dos trabalhos de Shimizu, e a estética sobrenatural da Mulher de Branco não se destaca como a de Kayako — a sua versão crua não é muito mais diferenciadora do que o regular antagonista de filmes de casa assombrada.

Apesar disso, Ju-On: Origins continua a ser uma bela conquista visual, com design e arquitetura diferenciadores e atmosfera sombria.

Ainda na vertente técnica, um dos destaques vai para a banda sonora. Esta é pausada e misteriosa, e envolve-se eficazmente com as cenas de investigação da trama, atribuindo uma vibe de thriller aos elementos dramáticos e terror já implementados, e intensifica-se nos momentos certos, servindo como um belo complemento à imagem, com grande qualidade de cor, sombra e luz. O ambiente claustrofóbico que resulta da combinação de todos os elementos técnicos já referidos é de tal qualidade que quase remonta à categoria da obra original — na temática da atmosfera claustrofóbica Ju-On: The Grudge continua a ser visualmente imparável!

Algumas das críticas passam também pela interação entre as personagens, que para uma audiência ocidental, poderá ser atípica ou questionável em certos momentos, mas que são comuns na cultura cinemática japonesa. Em todo o caso, para quem assiste a muito entretenimento japonês essas pequenas idiossincrasias culturais passarão despercebidas.

Não abstendo das suas imperfeições e a ausência de Kayako e Toshio na Netflix, Ju-On: Origins é uma obra criada com brio, que não exige muito do nosso tempo (apenas a nossa atenção), mas que arduamente se poderá estabelecer como uma pré-sequência dos filmes. No entanto, é difícil deixar de desejar que a série vá de alguma forma entrelaçar-se com a vida de Kayako antes da sua morte, algo que, apesar de poder vir a criar uma inconsistência no argumento, seria com certeza bem-vindo!

Pontuação Final 80/100

Segue o trailer oficial de Ju-On: Origins.