No terceiro dia do festival, foi exibido ‘First Love’, uma noite louca Yakuza realizada por Takashi Miike.
‘First Love’ (2019) é um belo exemplo de como a quebra de barreiras de género enriquece a criatividade cinemática, uma característica comum no cinema japonês, e por extensão, no cinema asiático. O 104º filme de Takashi Miike apresenta uma história inclassificável, sendo uma obra com uma rica dosagem de comédia, drama, thriller, ação, crime, suspense e terror gore, que se apresenta primariamente (e o nome sugere) como um romance.
Leo Katsuragi, interpretado por Masataka Kubota (Diner — Motelx 2019), é um pugilista sem espírito ou ambição mas com todo o talento do mundo, cuja jornada de vida dobra-se inesperadamente quando descobre, após desmaiar no ringue, que tem um tumor inoperável no cérebro.
Desamparado, circula em arrasto pelas ruas de Shinjuku quando, no momento crítico da sua vida, conhece Monica (Sakurako Konishi), uma jovem que foge em pânico de um indivíduo.
Monica é uma rapariga outrora inocente, que foi vendida como escrava sexual aos Yakuza, pelo seu pai, no intuito de pagar dividas pendentes. Deixada com tal fardo após o desaparecimento do mesmo, torna-se toxicodependente e as suas ressacas alucinogénias atacam-na com visões do seu pai, que apenas se cobre de um lençol branco na cabeça e uma cueca à anos 90 da mesma cor, sem motivo aparente, apenas porque sim, porque é cómico, porque é Takashi Miike.
Envolvida, sem saber, num plano traiçoeiro — executado por Kase (Shōta Sometani), um membro da máfia japonesa, e Ōtomo (Nao Ōmori), um polícia corrupto — com o objetivo de desencadear uma guerra aberta entre a tríade chinesa e a Yakuza, Monica é salva (com estilo), por Leo, quando perseguida pelo agente.
Por entre a adrenalina da loucura Yakuza e esta simpatética figura, Leo ganha uma nova resolução — sabendo que está próxima do fim, irá viver no limite o resto da sua curta vida!
A história de Muneyuki Kii, com argumento de Masaru Nakamura e direção de Miike, apresenta uma complexa narrativa com diferentes arcos que crescem num surpreso slow burn, e que culminam no mesmo ponto, com o propósito de desencadear um desfecho épico e repleto de ação e chacina.
É um passo narrativo inesperado para um filme deste género, mas que transparece um realizador veterano que não se apressa a revelar o seu jogo, e com o controlo de não apresentar demasiadas personagens, o que, no fim, ajuda na concretização de um final que pouco carece de lacunas. Contudo, as personagens, embora não desperdiçadas (e com especial destaque para a atuação e hilariantes caretas de Kase) também não são suficientemente desenvolvidas ao ponto de nos importarmos com o seu destino — apenas são aprofundadas o suficiente para estabelecermos quem são e que propósito servem.
A execução conta com uma bela fotografia (por Nobuyashu Kita), uma banda sonora (de Koji Endo) representativa dos vários estilos de ‘First Love’, desde a intensidade de um suspense, a acordes western de uma guitarra acústica, a complexas baterias e conjuntos de jazz que enriquecem as cenas de ação com um divertido ambiente, que não se carrega de modo sério e que, ao mesmo tempo, não perde um segundo da sua intensidade.
Numa peculiar vertente, o filme acaba por ser vítima da sua falta de orçamento, aplicando um CGI pouco memorável em certos stunts, que pouco colabora com a edição, e para a concretização de uma ambiciosa cena, uma viragem de live action para anime. No fim, acaba por ser uma alternativa hilariante e recordável, e é precisamente aquilo que esperamos deste icónico realizador.
Com o propósito de entregar um climax memorável, Miike inspira-se no seu próprio trabalho, tirando partido das artes marciais chinesas e da arte da espada japonesa que, embora não se aproxime da qualidade de batalha de 13 Assassins, não se perde em deboche como no culminar do seu Yakuza Apocalypse (Motelx 2015). Há momentos nas batalhas finais em que se torna evidente a influência do seu trabalho prévio.
Voltando à questão da edição, embora seja sólida pela maior parte, e com destaque para as cenas de boxe e de perseguições em carros, nas lutas de gangs perde-se demasiado nos close ups de câmara, não dando uma clara perceção do que se passa, o que decresce a qualidade da ação quando há o uso de artes marciais.
Ainda que ‘First Love’ apresente tudo o que esperamos de Takashi Miike, não é nem de perto o seu filme mais louco, o que não é uma crítica de todo, uma vez que não precisa de o ser. Entre o romance central de Leo e Monica e a frenética noite que os rodeia, Miike faz o que poucos conseguem — unir todos os géneros possíveis e imagináveis numa história sólida, divertida e violenta, com sucesso!
Pontuação Final — 75/100