As Crónicas do J-Horror: Episódio XII — ‘Ichi The Killer’ (2001)

★★★★☆

AVISO: O CONTEÚDO QUE SEGUE PODERÁ FERIR A SUSCETIBILIDADE DE ALGUNS LEITORES.

Baseado no manga com o mesmo título, de Hideo Yamamoto, Ichi The Killer é um violento clássico de culto realizado por Takashi Miike, um dos mais prolíficos e lendários realizadores de sempre, numa época em que o mesmo já nos havia apresentado épicos como Audition e Dead Or Alive. O produto final de Ichi The Killer em análise neste episódio provém de uma edição remasterizada que foi lançada em 2018, intitulada ‘Definitive Remastered Edition’, e que contém todas as cenas censuradas aquando do seu lançamento no último trimestre de 2001.

Para contextualizar, e antes de avançarmos à premissa do filme, a estreia mundial de Ichi The Killer ocorreu na secção Midnight Madness do Festival Internacional de Cinema de Toronto, em 2001, onde foram oferecidos sacos de plástico aos espetadores caso lhes ocorresse uma vontade súbita de vomitar! Devido ao seu conteúdo violento, o filme foi banido em certos países e noutros, como já referi, algumas das cenas foram cortadas ou censuradas.

Apesar de tudo, a violência neste filme é tão ridícula e a história tão surreal e absurda que a certo ponto torna-se cómica, uma vez que é uma adaptação live action de um manga louco, com CGI duvidoso.

Ichi The Killer não perde tempo nenhum em definir o tom do que estamos prestes a assistir, abrindo com um flashback de um chulo a agredir brutalmente uma prostituta enquanto Ichi, um jovem com olhar inocente, fato cosplay preto com o número 1 em amarelo assinalado nas costas, e botas com lâminas cortantes nos calcanhares, desfruta intensamente enquanto observa o ato pela janela.

Ao bater num vaso sm querer, esconde-se enquanto o chulo vem à varanda analisar o que se passa, deixando apenas um rasto de despejo dos seus desejos sexuais na inocente planta, rasto esse que escorre das folhas e cai no chão, formando uma pequena poça viscosa que revela o titulo por entre as suas paredes — ‘Ichi The Killer’.

A apresentação do título é, no mínimo, desconcertante, mas avancemos. Uma equipa de ‘limpeza’ aguarda numa carrinha enquanto Ichi assassina um chefe Yakuza, conhecido como Anjo, e ao serem convocados ao apartamento em questão encontram uma divisão com sangue, órgãos e entranhas espalhados por todo o lado, estabelecendo Ichi como um assassino sádico e sem filtros, e não seria o único.

Após uma estupenda limpeza desta equipa, o quarto que havia sido transformado numa casa de horrores está agora limpo e sem manchas, e numa habilidosa edição em que, no mesmo plano, o sangue desaparece das paredes, a luz solar entra e traços dos horrores ali passados desaparecem, surge Kakihara, um personagem de cabelo loiro com cicatrizes enormes na cara, um sorriso cortado à Joker e duas argolas penduradas nos cantos da boca.

Kakihara, interpretado por Tadanobu Asano (47 Ronin; Thor; Journey To The Shore; Silence), é um dos vilões mais complexos e memoráveis da história do J-Horror. É um assassino sadomasoquista que se diverte a torturar pessoas por prazer, prazer esse que só obtinha verdadeiramente quando agredido pelo seu chefe (Anjo), já morto nesta altura, e pela qual tinha uma admiração física incompreensível. Por ser alguém a quem devia tudo, Kakihara acredita que o seu chefe foi raptado e dispensa os rumores de que terá fugido com uma prostituta e a fortuna do gangue, embarcando numa jornada sangrenta para encontrar o seu adorado superior e, após certos desenvolvimentos, Ichi.

Por entre torturas com um gangster cuja pele é pendurada em ganchos de presunto e suspensa no ar, óleo fervido de tempura (camarão frito japonês) a ser espalhado pelas costas do mesmo, auto mutilações noutros contextos, polícias corruptos com faro de cão e um conjunto aglomerado de violência nauseante, Ichi The Killer é um conto yakuza centrado em duas personagens que se completam a si próprias, Kakihara e Ichi.

Ichi, interpretado por Nao Ohmori, é um jovem assassino sociopata com uma mentalidade de criança. Quando fica nervoso, começa a chorar incontrolavelmente mesmo antes de sacar das suas lâminas de calcanhar e cortar pessoas ao meio com atléticos pontapés, e nos tempos livres, quando não está a jogar Tekken envolto num cobertor, podemos avistá-lo na companhia de prostitutas com traços de agressões plenamente visíveis na sua cara. Violência é algo que o entusiasma e, devido à sua natureza manipulável, serve como carrasco de Jijii, um líder yakuza interpretado por Shinya Tsukamoto (realizador do clássico de terror cyberpunk Tetsuo: The Iron Man), que possui um enorme desdém pelos outros gangues e manipula hipnoticamente Ichi para fazer o seu trabalho sujo, instalando memórias de um passado tenebroso na sua cabeça.

Para quem assiste à arte de Takashi Miike, é importante referir que este realizador tem uma mentalidade e forma de trabalhar diferentes. Apesar de Ichi The Killer ser um festival de violência gratuita, Miike não direciona projetos com o propósito de chocar simplesmente, há uma profundidade na sua obra que reflete um surrealismo criativo e uma honestidade crua. Neste caso, o filme é violento porque as personagens são violentas, e apesar da moralidade desta película ter sido questionada devido aos atrozes atos presenciados, o mais importante para Miike centra-se nas suas personagens serem verdadeiras, puras e honestas.

Se for para o bem do filme, Miike não tem qualquer problema em remover-lhes as limitações que trancam o seu verdadeiro ser. Isto é uma característica que não se vê muito e nem todos os realizadores tem a liberdade para executar algo tão ousado, apenas artistas livres como este lendário realizador o conseguem!

Desenvolvendo a partir da temática das personagens, este filme é um excelente objeto de estudo acerca de como criar as mesmas e torna-las intrigantes e imprevisíveis, direcionando a história para cantos que as obrigam a revelarem-se para lidar com determinadas situações.

Kakihara, uma das figuras centrais, é uma personagem redonda e profunda, que apesar de ser um assassino frio e sadomasoquista, tem um código pelo qual se rege para justificar o que faz. Exercer violência num mundo violento é tudo o que tem e lhe foi atribuído pelo seu chefe, e como resultado, Kakihara sente uma intensa paixão pelo mesmo, ainda que desprovida de sentido amoroso. Segundo ele, Anjo era o único que lhe batia com paixão suficiente, algo que tem dificuldade em encontrar após o seu desaparecimento.

É um sociopata com características contraditórias que vive num aumento ansioso de sofrimento emocional por saudade do sofrimento físico, e para apimentar a trama, o argumento de Sakichi Sato oculta a Kakihara, inicialmente, que Anjo é morto na abertura.

É um padrão de storytelling que nem sempre se vê num filme cuja trama evolui primariamente como um mistério, mistério esse que é decifrado para a audiência logo na abertura. Já sabemos o que aconteceu e quem é o assassino, e ansiamos pelo que Kakihara irá fazer quando, pouco depois, descobrir a verdade.

Numa exposição brilhante, o suposto antagonista, Ichi, é tratado por Miike como um herói que enfrenta os vilões intocáveis, e o filme consiste no verdadeiro vilão yakuza a persegui-lo. Ao mesmo tempo, este vilão vive como uma vítima, porque Ichi tirou-lhe o que mais era importante para ele, e à medida que a história floresce, melhor entendemos a dor de Kakihara, como se, de alguma forma insana, fosse uma personagem relacionável pela qual queremos torcer.

Em acréscimo, podemos avistar um subtil comentário social, embora menos transparente comparado a outras obras de J-Horror da mesma era, em parte por ser um filme baseado num manga, o que o torna, por defeito, irrealista e com personalidades excessivas, mas também devido à vida trágica de Ichi, que oferece um olhar sobre a solidão, após a perda da sua família, e como uma sociedade sem escrúpulos se apodera de uma mente inocente.

Além de Ichi e Kakihara, as personagens que os rodeiam são também honestas relativamente ao que são e às suas emoções, e Takashi faz questão de manter essas características vívidas e viscerais.

Apesar de Ichi The Killer brilhar nas personagens que desenvolve, a narrativa é confusa, com desfechos que não entendemos e que não são devidamente explicados. Isto deve-se, uma vez mais, ao desejo de Miike de confundir a audiência, e o mesmo acontece quando tentamos classificar o género deste filme — É uma obra de terror (certo!), mas tão absurda que alguns a consideram como terror comédia, recheada de crime, mistério, exploitation, e ainda elementos de sci fi, fantasia e cyberpunk quase distópicos.

Na vertente técnica, podemos notar uma excelente realização acompanhada por uma sólida fotografia de Hideo Yamamoto, não o criador do manga Hideo Yamamoto, mas o diretor de fotografia com exatamente o mesmo nome e apelido; e fornece um tom muito menos obscuro do que provavelmente seria suposto ter, com um conjunto de cores vívidas, quentes e intensas.

A edição, que brilha em momentos chave, em certas montagens joga em equipa com os imperfeitos efeitos visuais de Misako Saka e a sua equipa. O modo como algumas cenas são montadas e editadas com o CGI reflete características típicas de um cinema de baixo orçamento, o que impede o filme de se tornar demasiado sério e acaba por ajudar a digerir os efeitos gore recorrentes, tornando alguns dos mesmos absurdos e cómicos, e mais notáveis ainda na versão restaurada. Tais efeitos complementam-se com a maquilhagem de Yuichi Matsui, que assume a liderança na execução de cenas de tortura, com agoniantes ‘esticanços’ de pele!

A nível de som, o sound design é parcialmente idêntico ao de anime, por razões óbvias — Takashi Miike fez questão de se manter fiel ao manga e não se desviar da metodologia que caracteriza as bandas desenhadas japonesas. A banda sonora, por outro lado, é uma temática curiosa. Foi escrita e produzida pelos Karera Musication, um projeto secundário da banda de rock japonesa Boredoms, e a mesma não visualizou o filme inteiro antes de produzir as músicas, essencialmente basearam-se na vibe que tinham do manga, e o resultado foi posteriormente editado e montado para o filme, o que nos trás, em full circle, à mestria de Ichi The Killer. Takashi Miike tem uma característica muito particular, é um realizador muito descontraído, e quem está mais ou menos familiarizado com o seu trabalho consegue notar que o mesmo se diverte e constrói os seus projetos livremente, dando liberdade à sua equipa para serem eles próprios na forma como executam as suas funções, ajustando onde mais importa, e o produto final é uma reflexão disso. As pequenas falhas e peculiares idiossincrasias já são esperadas e elevam sempre a arte de Miike!

Ichi The Killer é um filme que quebra muitas regras cinemáticas, e por isso é que se tornou um clássico de culto. É uma ideia interessante que se repete ao longo da história do cinema — os filmes que quebram as regras, mesmo que acidentalmente, tendem a ser reconhecidos como inovadores!

Segue o trailer da Definite Remastered Edition de Ichi The Killer.