As Crónicas do J-Horror: Episódio XIX — ‘Pulse’ (2001)

★★★★★ — A Solidão Eterna e o Terror da Internet, por Kiyoshi Kurosawa

Pulse, também conhecido como ‘Kairo’, é o resultado de mais de uma década de ideias e trabalhos acumulados por Kiyoshi Kurosawa, tendo sido lançado em 2001, no rescaldo da época mais prolífica da sua carreira, a década de 90, onde realizou cerca de 18 filmes!

A segunda obra prima de Kurosawa seguiu o padrão da primeira, Cure (episódio XVI), onde este, lançado em 1997, viu a sua popularidade crescer no ocidente a partir de 2001, e Pulse a partir de 2006, aquando do lançamento do remake americano, apesar de ter, entretanto, gerado uma audiência de culto no circuito de festivais e ter sido selecionado na categoria Un Certain Regard do festival de Cannes em 2001. Na altura, os direitos de distribuição foram adquiridos pela Miramax, mas por razões desconhecidas, só foi lançado em DVD anos mais tarde, desta vez pela Magnolia Pictures.

Abstendo de toda a confusão logística e corporativa e da pobre recepção do remake, hoje Pulse é visto como uma das obras mais importantes do boom do J-Horror, e uma paragem importante para quem aprecia cinema de género e de autor.

Para quem explorou o trabalho de Kurosawa nos anos 90, é impossível não encontrar uma correlação entre Pulse e as técnicas de direção e temas abordados no seu trabalho antecedente, começando pela condição humana, no tema da solidão e relações pessoais numa sociedade complexa, que volta a assumir o volante nesta obra que é, no fundo, um olhar sobre a solidão na era da Internet. Um olhar pessimista, admito, mas qualquer filme de terror que se preze tem que o ser!

O argumento de Kiyoshi Kurosawa centra-se à volta de duas histórias que acontecem em paralelo e que nos são apresentadas alternadamente, até eventualmente se cruzarem.

No primeiro arco, somos introduzidos a Michi, Junko, e Yabe, interpretados nesta ordem por Kumiko Aso, Kurume Arisaka, e Masatoshi Matsuo, três funcionários de uma florista que tentam contactar, sem efeito, o colega Taguchi (Kenji Mizuhashi), que faltou uma semana ao trabalho depois de se ter ausentado para trabalhar num disco de computador.

Ao visitá-lo no seu apartamento, Michi encontra-o distraído, mas tranquilo, com o mesmo indicando que o trabalho está completo no disco. Michi procura-o na pilha de tralha que se encontra na secretária de Taguchi, e vemos o mesmo sair de campo, apenas para a nossa amiga o encontrar enforcado segundos mais tarde, num embate aterrador que abre as hostilidades nesta que é uma das obras mais aterradoras de todo o J-Horror.

Se a natureza sombria, o nevoeiro, e a cinematografia escura de Pulse não foram indicação do que estaria para vir, a imagem hipnotizante das veias inchadas no pescoço enforcado de Taguchi com certeza foram!

Após o choque, Michi, Junko e Yabe analisam o disco do amigo, encontrando uma filmagem do mesmo, bloqueado e quase que em transe na sua secretária, refletindo-se no ecrã do seu computador um conjunto espiral de imagens de Taguchi a olhar para o mesmo, com outra de um fantasma a revelar-se subtilmente noutro monitor. Uns dias mais tarde, assumindo, Yabe recebe uma chamada em que uma voz sussurra ‘socorro’, revelando-se de seguida no seu micro ecrã de telemóvel a mesma imagem do disco de Taguchi, conduzindo Yabe de volta ao seu apartamento.

Lá, encontra uma mancha negra no local onde Taguchi se enforcou, e um papel onde se encontra escrito ‘O Quarto Proibido’, uma informação que Yabe retém após sair do apartamento do seu falecido amigo, apenas para a mesma voltar logo a seguir, quando encontra uma porta sublinhada por uma fita vermelha nas suas extremidades. Atraído pela aura exuberante que a porta trás e perseguindo o mistério, Yabe entra num quarto escuro, à noite, sozinho e abandonado. O que aconteceu nesse quarto é de fazer disparar a ansiedade de qualquer um, é uma das cenas mais arrepiantes que alguma vez vi num filme de terror!

Virando o flanco para o segundo arco desta longa metragem, Kawashima (Haruhiko Kato), um estudante universitário de economia, tenta instalar um pacote de Internet no seu computador, quando o mesmo o reencaminha para variadas imagens de pessoas sozinhas em estado catatónico e em quartos escuros, seguido da mensagem ‘Gostarias de conhecer um fantasma?’

Em pânico, Kawashima larga o computador, indo no dia seguinte ao departamento de Ciência de Computadores, onde conhece Harue (Koyuki Kato, que participou n ‘O Último Samurai’), uma aluna de pós-graduação que lhe dá indicações sobre o que fazer. Nessa noite, Kawashima volta a tentar instalar a Internet, mas uma imagem aterradora de uma pessoa num quarto escuro, com um saco preto na cabeça volta a aterroriza-lo, desistindo uma vez mais. Com isto, e com um estranho interesse na situação de Kawashima, Harue procura ajudá-lo a desvendar o mistério fantasmagórico que parece envolver sucessivamente mais pessoas, à semelhança do arco de Michi, Junko e Yabe.

Como referido no início, Pulse é o culminar de várias ideias concretizadas num único filme, sendo diretamente influenciado por Ring (episódio II), com fantasmas a invadirem o mundo dos humanos através da Internet. Visualmente, podemos observar algumas semelhanças, principalmente por ter o mesmo diretor de fotografia, Jun’ichirô Hayashi.

Pulse apresenta uma imagem muito cinzenta, com o céu constantemente esbranquiçado de nevoeiro, cores neutras, e tons de amarelos antinaturais em cenas noturnas. Há um constante ambiente deprimido e solitário, que cresce à medida que o filme avança, e que nos prende a cada frame.

Tudo em Pulse é feio, o ambiente, o guarda roupa, os décors, com destaque para fábricas, obras, edifícios abandonados, casas de personagens desarrumadas e pouco atrativas, até os arcades têm um ar triste, apesar de em teoria serem lugares felizes, cheios de luz e entretenimento. Mas é isso que torna o filme belo, ironicamente. Os filmes japoneses têm a tendência de mostrar a beleza urbana e natural do Japão, o que não resultaria aqui.

A direção, à semelhança de Cure, volta aqui a ser imaculável. Cada frame é trabalhado ao detalhe, e Kurosawa faz um excelente aproveitamento da combinação entre o som e a imagem. O sound design é absolutamente brilhante e congelador, com música melancólica, mas não excessiva, anulação total de som em certas cenas de suspense, que arrepiam a espinha e disparam as hérnias da coluna, e claro, a apresentação do terror.

Kurosawa acredita ser mais assustador revelar os fantasmas num canto do plano, sem foco na personagem, deixando nós, a audiência, sem saber o que fazer, uma vez que, tipicamente, os espíritos e fantasmas movem-se muito rápido, em repentinos jump scares que nos assustam como uma injeção de adrenalina.

Aqui, são exploradas outras formas de induzir o medo, pela incerteza e suspense, em que parece óbvio que vem aí um susto bombástico e explosivo, mas nunca mais acontece, e o fantasma aproxima-se, sem emoção, sem motivo aparente, caminhando lenta e dolorosamente, fechando-nos no plano, encostando-nos à parede, e obrigando-nos a roer as unhas quando já não podemos encolher-nos mais na nossa acolhedora manta de Inverno. É um método muito japonês que exige um grande autocontrolo na realização, e que por consequência atribui a esta longa uma originalidade autêntica, mas não é única característica que a torna assim.

Pulse é o resultado da época em que se vivia, e não poderia ter sido feito noutra altura. Em 2001, fóruns e chats começavam a ganhar popularidade, e comunicar com outras pessoas através da Internet era uma novidade entusiasmante, algo que hoje é incrivelmente banal. Apesar de um dos seus propósitos ser o de aproximar as pessoas, Kiyoshi Kurosawa apresenta uma teoria pertinente, que não seria a única em Pulse, mas talvez a mais importante. Colocou a hipótese de que a Internet poderia tornar-se uma espécie de troca pela liberdade.

Com a possibilidade de comunicar remotamente, a necessidade das pessoas se juntarem fisicamente é menor, causando um efeito contrário ao pretendido. É possível que dispositivos como computadores e telefones tenham um efeito contrário ao objetivo de unir as pessoas, fazendo com que as mesmas valorizem mais a sua individualidade do que as relações com os outros, e a Internet oferece essa falsa sensação de contacto e de liberdade. Apesar de sermos livres para nos conectar (ou não) com os outros nas redes sociais, a alma permanece solitária.

Outra teoria, ainda mais profunda e pessimista, é que vivemos e morremos sozinhos, e vemos essa desenvolver-se através de Harue, a personagem mais intrigante do filme. Harue sempre se sentiu sozinha, mesmo tendo família nunca conseguiu realmente conectar-se com ninguém, deixando-a curiosa acerca do que acontece no pós-vida, mas a questão traz-lhe ao mesmo tempo incertezas. E se na morte continuarmos sozinhos? E se for tudo um poço sem fundo e sem esperança? Conseguimos realmente conectarmo-nos com outras pessoas ou, no fundo, estamos presos à nossa individualidade? São profundas questões humanas que se tornam uma necessidade quase tão básica como a de comer, o medo de vivermos para sempre sozinhos.

Tais hipóteses caracterizam o universo de Pulse em detalhe, onde, à medida que o filme passa, vemos cada vez menos pessoas, seja em supermercados, comboios, autocarros, assim como desconhecemos a identidade dos fantasmas que invadem o mundo. O que acabamos por entender é que todos, vivos ou mortos, vivem em solidão eterna. Essa solidão e depressão são contagiosas, num isolamento social que deixa as pessoas sem vontade de viver, uma após a outra, subtilmente enclausurando tudo e todos — a sociedade, a civilização, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.