★★★☆☆
Lançado um ano previamente a Cure (1997), ‘Door 3’ revela um Kiyoshi Kurosawa a aperfeiçoar a sua pegada cinemática e próximo de cementar-se como um cineasta de renome. Há vários elementos no terror de ‘Door 3’ que serão familiares para os fãs de Kurosawa, e que o mesmo concretizaria com brio e perfeição nas suas obras mais famosas. Para isso, a sua experiência em V-Cinema foi fundamental.
Após ‘Sweet Home’ e ‘The Guard From The Underground’, Kiyoshi Kurosawa começou a realizar filmes no formato V-Cinema, que consiste essencialmente em lançamentos diretos em vídeo, que não têm tanta filtragem na produção e distribuição como as obras lançadas no cinema e na televisão, o que no Japão dos anos 80 e 90 trouxe algumas vantagens. Apesar de serem todos filmes low-budget, sendo os canais de distribuição diferentes dos habituais, os cineastas tinham uma liberdade maior para criarem conteúdo, e os estúdios vendiam diretamente ao consumidor, o que facilitava a criação de públicos nicho e um retorno de investimento mais rápido. Esta metodologia foi muito prática durante a crise económica japonesa dos anos 90, em que os estúdios se encontravam com sérias dificuldades financeiras, e, no contexto do J-Horror, o V-Cinema serviu como breakout para grandes realizadores, tais como, Hideo Nakata, Takashi Miike, Takashi Shimizu, e claro, Kiyoshi Kurosawa.
Com argumento de Chiaki Konaka, ‘Door 3’ continua o trabalho que Kurosawa desenvolveu em ‘The Guard From The Underground’ (episódio XIV), e à semelhança do mesmo, traz-nos de volta a um contexto corporativo e empresarial, em que a influência da crise económica transforma o mundo do trabalho num ambiente predador em que vale tudo menos valores éticos e morais.
Miyako Sasaki (Tanaka Minako), uma vendedora de seguros dedicada e orgulhosa, persegue uma possível promoção, e uma vez que o seu objetivo mensal ainda não foi cumprido, tenta uma estratégia mais ousada, cruzando-se com Mitsuru Fujiwara (Akihiro Nakazawa), um jovem CEO de uma empresa em expansão, e embate contra ele de propósito, fingindo ter magoado o tornozelo. Sentindo-se culpado, Fujiwara escolta-a ao seu escritório para tratar da lesão, mas ao chegarem, avistamos um staff constituído totalmente por mulheres cuja postura corporal dá a sensação de que lhes foi sugada a alma. Cabisbaixas, deslocam-se pelo escritório como se fossem zombies ou personagens de um jogo em 8bits, muito estáticas e silenciosas. A complementar, a atmosfera das instalações é baça, inquietante e envolvida por um som de nevoeiro vazio.
Apesar da tentativa falhada em vender um seguro a Fujiwara, há qualquer coisa nele que a atrai de uma forma carnal, embora não considere uma atração física — algo invulgar em Fujiwara deixa-a impotente perante a sua presença.
Em sequência desta visita, Miyako começa a experienciar acontecimentos peculiares, tais como, encontrar vomitado na sua porta de casa, recorrentes aparições de figuras femininas que a olham com desdém à distância, e o pior de tudo é o próprio Fujiwara, que esconde um terrível segredo e usa-o para seduzir e assombrar a Miyako.
‘Door 3’ está repleto de comentário social, abordando temas como a agressividade do mundo das vendas durante a crise e o impacto das tecnologias nos trabalhadores e as suas carreiras, assim como, em primazia, o mundo corporativo na perspetiva das salarywomen, mulheres que dedicam a sua vida ao trabalho, e o estereotipo de que estas necessitam de seduzir clientes para subirem a escada empresarial.
A personagem de Miyako serve como um ataque a essa assunção, apresentando-se a mesma como uma mulher versátil e orgulhosa que se recusa a dormir com clientes, e estabelecendo um paralelo entre si e Reyko, uma colega mais vulnerável que não partilha os mesmos princípios e à qual somos introduzidos quando esta se embrulha com um cliente numa casa de banho.
Para apresentar o terror neste contexto, Kurosawa filma em zonas pouco convencionais como bares e escritórios de empresas, que têm um aspeto muito casual, corporativo e industrial, e ao longo do filme nunca avistamos uma ponta de vegetação, atribuindo desse modo uma atmosfera claustrofóbica e sufocante, da qual não somos aliviados nem mesmo quando Reiko e Miyako sobem ao telhado de um edifício, pois o que se vê no horizonte é uma paisagem urbana preenchida por prédios e nada mais. Tudo é plástico e insincero.
Com ‘Door 3’, Kiyoshi Kurosawa distancia-se das influências do terror ocidental dos anos 80, aplicando uma abordagem mais próxima da condição humana, e experimentando métodos de realização que não só replicaria em obras futuras — mais notavelmente em Pulse (2001) — como também acabariam por servir como influência na saga Ju On de Takashi Shimizu, uma vez que Kurosawa foi o seu mentor.
Além do terror da condição humana, Kurosawa traz para o ecrã elementos sci-fi que complementam a vertente mais sobrenatural do filme, e que envolvem feromonas, parasitas e desejo carnal, isto porque o antagonista Fujiwara é o anfitrião de um parasita raro que literalmente atrai pessoas do sexo oposto, dominando-as através das feromonas (só os japoneses para inventarem uma coisa assim!).
Apesar do potencial, Kurosawa não expõe em filme o desejo carnal ao máximo das suas capacidades, servindo a combinação entre o sexo e o sobrenatural mais como uma metáfora para Miyako, que se recusa a comprometer com Fujiwara e a ceder às suas agressivas investidas.
A nível técnico, ‘Door 3’ é um filme de baixo orçamento no qual Kurosawa volta a fazer uma boa gestão de recursos, com uma montagem cuidada, uma fotografia (por Noboru Ono) que faz um bom aproveitamento da cor, principalmente no escritório de Fujiwara, nebulado, depressivo e sufocante, e o som é sólido, há exceção de uma cena mais ambiciosa onde no fim se nota algumas falhas de continuidade.
O argumento está longe de ser perfeito, mas, no entanto, o que mais se destaca é de facto a realização, com belos planos que tornam o filme inquietante, mesmo em locais improváveis, e o tal acompanhamento da luz e ambiente tenso e sufocante, que transcende de cena para cena há medida que a ameaça do antagonista se torna mais evidente.
Num ponto menos positivo, quando finalmente chegamos ao confronto final entre Miyako e Fujiwara, esta atravessa uma porta de aço em sua casa, a ‘Porta 3’ correspondente do título, e aqui já entramos num ambiente típico de terror — uma casa muito escura e de aspeto assombrado, com nesgas de luz a entrarem pela janela. Neste momento, a banda sonora de Torsten Rasch, que havia sido sólida pela maior parte do filme, acaba por regredir a sua qualidade, substituindo o seu efeito recorrente bombástico, psicótico e catártico por calmas melodias que condicionam a cena, e os efeitos práticos e especiais, de Taichi Itô e Akira Susuki, apesar de decentes na revelação física do parasita, não salvaram o confronto final, que foi executado de uma forma pouco climática, com uma utilização demasiado económica dos planos que acabou por diminuir a intensidade do desfecho, ainda que a reviravolta final tenha encerrado o filme numa nota alta.