As Crónicas do J-Horror: Episódio XVI — ‘Cure’ (1997) — A Cura Para a Sociedade e a Condição Humana

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Em 1997, Kiyoshi Kurosawa já se havia tornado um prolífico veterano do cinema, com uma carreira de mais de 15 anos e um extenso circuito em V-Cinema, onde por esta altura, realizava filmes a uma velocidade de 3 a 4 por ano. Para quem assiste a ‘Cure’ poderá ser difícil acreditar que um filme de tal magnitude, detalhe e perfecionismo foi realizado no meio desta agenda impossível, o que diz muito sobre o seu realizador.

‘Cure’ representou uma mudança na carreira de Kurosawa, que não veio por acaso, mas sim devido a uma ética de trabalho imensurável, uma delicada gestão de tempo e recursos, e um voto de confiança da Daiei Film, que entregou a Kurosawa a liberdade criativa necessária para concretizar a sua visão.

Ao contrário da maioria dos seus filmes até então, ‘Cure’ foi intencionalmente lançado no grande ecrã, mas o seu sucesso internacional não seria imediato, pois foi lançado na América apenas em 2001, tendo progressivamente acumulado adeptos no circuito de festivais em 1998 e 1999, assim como prémios impressionantes em variadas cerimónias, particularmente nas categorias de ‘Melhor Ator’, ‘Melhor Realizador’ e ‘Melhor Filme’.

Apesar do longo caminho, este épico thriller de terror colocou Kurosawa na linha da frente da nova vaga de cinema contemporâneo japonês, caminhando ao lado de êxitos como Ring e Audition na reta final do século XX.

Escrito por Kiyoshi Kurosawa e combinando elementos de thriller, policial, mistério, suspense, drama, psicologia, filosofia, e claro, terror, ‘Cure’ é um autêntico cinema de autor, com um soberbo argumento protagonizado por Koji Yakusho, na sua primeira de muitas colaborações com Kurosawa.

Takabe (Koji Yakusho), um habilidoso detetive que vive conflituado entre cumprir as suas obrigações profissionais e cuidar da sua esposa (Anna Nakagawa), que sofre de uma severa doença mental, investiga uma série de violentos assassinatos que apresentam elementos em comum, nomeadamente um enorme ‘X’ cravado no peito das vítimas.

Embora se interliguem desse modo, todos esses crimes que se repetem ao longo do filme são executados por diferentes pessoas, que apresentam estranhas e inconclusivas confissões, admitindo que cometeram o crime, mas de forma muito superficial e falhando em justificar devidamente o que fizeram. A sua casual confissão e consciente desconexão em relação aos seus agressivos homicídios tornam praticamente impossível para Takabe conectar os diferentes casos, que luta contra a frustração de não conseguir encontrar uma razão lógica para tudo o que se passa e aparentemente se conecta à sua volta.

O fio condutor desta série de homicídios acaba por surgir quando a polícia encontra Mamiya (Masato Hagiwara), um jovem misterioso e suspeito que teve contacto breve com todos os perpetuadores pouco antes de cometerem os crimes. Takabe, em colaboração com o psicólogo Sakuma (Tsuyoshi Ujiki), interroga Mamiya na esperança de obter uma confissão e encerrar o caso, mas no entanto, o suspeito apresenta uma forte amnésia e recusa-se a responder diretamente a qualquer questão que lhe colocam. Mamiya desvia-se repetidamente do tema com perguntas sobre quem são eles e onde estão, e insiste em saber detalhes sobre a vida das pessoas que o confrontam, o que vai de encontro à teoria de Takabe de os perpetuadores dos crimes terem sido hipnotizados. O constante desviar de questões e tentativa de manipulação por parte de Mamiya acaba por servir como um teste à paciência de Takabe, que demonstra dificuldade em manter uma postura profissional durante os interrogatórios, e a pressão do caso poderá levá-lo ao limite.

‘Cure’ é a perfeita junção de narrativa, som e imagem, com uma direção artística de alto nível e uma profundidade psicológica muito densa, que se reflete em cada frame. Há uma constante atmosfera fria, trágica e inquietante, a banda sonora de Gary Ashiya é misteriosa e paciente, e os cenários escolhidos por Kurosawa e o diretor de arte, Tomoyuki Maruo, consistem maioritariamente em edifícios velhos e abandonados, que se destacam em planos abertos e contínuos que minimizam as personagens, tornando-as pequenas num mundo gigante ao qual não conseguem escapar e não conseguem fugir de quem são.

Este detalhe é de crucial importância para a mensagem de ‘Cure’, um filme repleto de comentário social acerca da condição humana, que nos confronta com a realidade da vida, da sociedade, dos desafios profissionais e pessoais, de quem somos e do que somos capazes. Sentimos em cada plano o quanto inescapável a realidade é para cada personagem, no sentido em que Kurosawa mantém os cortes ao mínimo e segue as personagens em planos abertos que não as deixam saír de campo, notavelmente durante os interrogatórios de Takabe, em que por mais que se atirem contra as paredes, chorem, deitem-se, e esperneiem ao recordar a visceralidade dos seus atos, não há escapatória possível.

No caso de Takabe, a consciência, a procura de significado e o fazer o que está correto caracterizam perfeitamente o que vemos dele, mas quem é ele realmente? Kiyoshi Kurosawa coloca complexas questões no argumento de ‘Cure’, que têm como base a nossa identidade e a essência de quem somos. Takabe leva uma vida dupla — no trabalho é um detetive sério e focado, e em casa é um marido dedicado e acolhedor — no entanto qual das duas personalidades é a sua verdadeira? Quando algo acontece que nos muda, somos a mesma pessoa no fundo? Ou transformamo-nos? Se Takabe cometer alguma atrocidade, foi porque assim se tornou, ou sempre foi assim?

São questões pertinentes, mas que não são conclusivamente respondidas em ‘Cure’, talvez por não haver uma resposta sólida numa sociedade em constante transformação. No caso específico deste filme, poderá haver outro motivo….

A partir daqui este artigo irá conter SPOILERS. Para os interessados em ver este filme fiquem pelo trailer abaixo.

Ao descobrir onde Mamiya vivia, Takabe visita o local, encontrando imensos livros de psicologia e relatórios de estudos, nomeadamente artigos sobre mesmerismo. Mesmerismo, também conhecido como magnetismo animal, foi um prelúdio da hipnose, sendo nomeado pelo médico Franz Mesmer no século XVII. O mesmerismo coloca a hipótese de que existe uma força invisível presente em todo o Universo, incluindo os seres vivos, cuja manipulação pode revelar efeitos físicos, incluindo propriedades de cura. Mamiya vive obcecado com a técnica do mesmerismo, ao ponto de ser capaz de controlar as ações das pessoas, tornando-o um génio da hipnose.

Apesar de isso justificar em parte as ações das personagens neste filme, Sakuma explica a Takabe que a hipnose não altera a natureza do hipnotizado, pelo que se alguém não estiver predisposto a matar, a hipnose não o conseguirá obrigar. Esta justificação traz uma reviravolta interessante a ‘Cure’, pois assim podemos assumir que os perpetuadores dos assassinatos são, em parte, culpados, o que nos retorna à questão da identidade.

No climax do filme, Takabe entra num ponto de rutura e mata Mamiya, terminando as últimas cenas com a imagem aterradora da sua mulher morta, com um ‘X’ cravado no peito, seguido de um calmo jantar de Takabe a solo num restaurante. Após a empregada de mesa recolher o seu prato, vemo-la casualmente a pegar numa enorme faca e a circular pelo restaurante no último frame.

Isto sugere duas situações. A primeira é que Mamiya conseguiu com sucesso corromper Takabe, passando-lhe de alguma forma as suas habilidades, e a segunda está relacionada com a questão da identidade, com a imagem da sua esposa morta e o seu alívio ao jantar calmamente a sugerir que, ao livrar-se do fardo da sua vida pessoal e das responsabilidades da sua profissão, Takabe ‘curou-se’, encontrando por fim paz de espírito.

Apesar de uma ‘cura’ bastante mórbida, Kurosawa deixa-nos com a questão: ‘Será que ele o fez? Estará a ser controlado? Qual é a verdadeira essência desta personagem? É uma pessoa de bem ou tornou-se ou sempre foi um assassino?’ Se a sua esposa não estivesse doente e tivessem ido de férias, tal como lhe prometeu, o seu verdadeiro ‘eu’ teria encontrado paz de espírito a fazer o bem?

‘Cure’ é um filme de terror transcendente, que ao recusar-se a fornecer-nos uma resposta concreta às suas grandes questões, coloca-nos a tarefa de a encontrar nós mesmos, deixando-nos a pensar como se ‘hipnotizados’ pelo que acabámos de assistir, e Kurosawa fá-lo subtilmente num passo slow burn e crescendo, intercalando ao longo do filme cortes rápidos de imagens viscerais, que hipnotizam o filme, as personagens, e nós.