As Crónicas do J-Horror: Episódio XVIII — ‘Séance’ (2000)

★★★☆☆

Baseado na obra ‘Séance on a Wet Afternoon’ de Mark McShane, a história contada neste filme co escrito e realizado por Kiyoshi Kurosawa é uma combinação de diferentes elementos e estilos a que o mesmo nos habituou na sua filmografia ao longo dos anos. De muitas formas podemos classificar ‘Séance’. É um filme de terror (sem dúvida!), que se carrega como um thriller e policial, pintado por um drama familiar e uma viagem introspetiva à simplicidade de uma vida normal e a libertação desse compromisso, como se um ‘coming-of-age’ para uma faixa etária mais madura.

Apesar de mera especulação, suspeito que Kurosawa já tinha em mente alguns dos elementos que queria colocar em Pulse (2001) por esta altura, e o presente trabalho acabou por servir como um ‘testing ground’ para isso.

‘Séance’, em português, ‘sessão espírita’, é uma história com várias frentes que se unem. Abre num instituto de psicologia com um diálogo entre dois psicólogos acerca de experimentos e teorias controversas do ramo, que envolvem o contacto com espíritos, um easter egg que volta a complementar a narrativa mais tarde, quando o plano corta para Junko Sato, interpretada por Jun Fubuki, uma médium que procura legitimar as suas habilidades, e sobre as quais temos prova da sua existência aquando da sua introdução. Infelizmente, a sua audição é recusada quando chega ao instituto.

Noutra frente conhecemos Koji Sato (Kôji Yakusho), o marido de Junko, um técnico e assistente de som num estúdio de televisão, que carrega no seu rosto todos os traços de uma pessoa simples que poderá ou não estar satisfeita com a sua vida, mas que a vive sem grande manifestação emocional.

A vida é simples, mas não é fácil para este casal que vive numa bela casa no campo, principalmente para Junko. A sua habilidade de ver espíritos e fantasmas acaba por se tornar um fardo que carrega para onde vá, sendo difícil para a mesma concentrar-se no mundo do trabalho com fantasmas que a fitam sem expressão facial, que a impossibilitam de manter um emprego, e é insustentável governar-se como médium. Apesar de tudo, a mesma esforça-se por ser uma boa esposa e apoiar o seu marido em todos os seus projetos e conquistas, sem incomodá-lo com as suas frustrações. No entanto, a sua rotina estaria prestes a tornar-se menos aborrecida.

Na terceira frente, conhecemos Yoko, uma criança que havia sido raptada e que consegue escapar ao captor no Mt. Fuji, cruzando-se com a carrinha e o equipamento de Koji, grandes malas de metal que carregam perches e outros materiais de som, que o mesmo havia esvaziado para gravar sons naturais da floresta, e esconde-se numa delas, ficando posteriormente lá trancada e acidentalmente transportada para a casa dos Sato.

Entretanto, Junko é convidada de volta ao instituto de psicologia para ajudar na investigação de um rapto, em que procuram utilizar as suas habilidades para localizar uma menina, que, coincidentemente, é a mesma que se encontra dentro de uma caixa no chão da sua garagem. Após falhar em localizá-la e provar as suas habilidades, regressa a casa, não demorando muito até ao casal descobrir Yoko, inconsciente, mas viva.

Com a motivação de não serem presos por rapto e provar o potencial de Junko como médium, o casal monta um plano para ‘devolver’ a criança e colherem os louros, mas, no entanto, um acidente estraga os seus planos.

Séance apresenta uma narrativa imprevisível pela maior parte, e a sua execução oscila entre diversos géneros cinematográficos, sendo por vezes difícil decifrar que tipo de filme estamos a ver, um desafio que Kurosawa abraçou quando lhe foi proposta a adaptação do livro. Isto é algo típico na carreira de Kurosawa, que procura entrelaçar diferentes tópicos nos seus filmes, adquirindo dessa forma a tal pegada de autor que se destaca no seu trabalho.

Há um balanço entre o terror e a psicologia neste filme que ajuda na construção e desenvolvimento das personagens, que remonta à primeira cena, no diálogo entre os psicólogos, acerca de teorias como o efeito Doppelganger, teorias do subconsciente, autores como Jung e Edison, e vemos um pouco das mesmas a reproduzir-se no frame mais tarde, cruzando-se pelo caminho com o comentário social da aceitação de uma vida normal ‘versus’ a ambição humana e procura de felicidade e significado. É um filme sobre ambição, compromisso e sacrifício.

Há um conflito introspetivo nas personagens que cresce ao longo do filme, e que passa pelo significado da vida. É passada a mensagem que a paz será galardoada igualmente para todos aqueles que vivem uma vida modesta, mas paz significa felicidade? Compromisso traz-nos realização? Kurosawa volta mais uma vez a colocar este tipo de questões sociais que já havia investido em Cure, e as personagens tentam, à sua maneira, lutar contra essas convenções.

Na execução, Kiyoshi Kurosawa é um mestre. Séance é um filme de baixo orçamento feito para a televisão, o que implicou um compromisso grande por parte da realização. Para o terror, o filme estaria limitado na porção de violência, grafismo, e conteúdo provocante, pelo que Kurosawa teve que fazer o melhor proveito dos recursos que tinha, algo a que já estava habituado. Isto resultou em escolhas de planos deveras interessantes, e movimentos lentos, mas claros de câmara, que foram muito práticos na apresentação do sobrenatural, sem necessidade de recorrer a bruscos jump scares ou movimentos para assustar a audiência.

Mesmo sendo para o pequeno ecrã, Kurosawa filmou como se fosse para o cinema, ajudando imenso a cinematografia do filme, com atmosfera e tensão inquietante em crescendo à medida que o filme corre pelo terceiro ato, através da colaboração com o diretor de fotografia Takahide Shibanushi (Ring 0), um trabalho de som bastante sólido que cruza diferentes perspetivas entre personagens e fantasmas, com a anulação de som ou som de tensão que se prolongam e intercalam entre planos e personagens diferentes, e uma montagem cuidada de Jun’ichi Kikuchi, que voltaria a trabalhar com Kiyoshi Kurosawa em Pulse.

No que concerne à imagem, mesmo com uma atmosfera e cores frias atrativas, as apresentações do sobrenatural não se esquivam de algumas falhas nesse departamento, mas com o orçamento disponível, é normal que alguns dos efeitos práticos e visuais não sejam os desejáveis.

As limitações da TV acabam por limitar o próprio filme, e acredito que Kurosawa conseguiria chegar muito mais longe com esta premissa.

Ainda, narrativamente, Séance não se escapa a algumas lacunas, principalmente na cena em que Koji leva acidentalmente Yoko para casa — quero acreditar que o mesmo se aperceberia que a sua caixa estava mais pesada do que o costume, principalmente se estava vazia; há personagens secundárias que servem apenas como adereços para a história, mas que poderiam enriquecer a mesma, assim como seria interessante Kurosawa ter explorado melhor as motivações dos espíritos que perseguiam as personagens.

Há uma aterradora cena ainda no primeiro ato em que Junko, a trabalhar num restaurante, avista um fantasma que persegue um cliente para dentro e fora do estabelecimento. É um fenómeno que pouco se vê fora da perspetiva íntima de Junko, pelo que poderia enriquecer o ambiente envolto da mesma com, por exemplo, a personagem a passear na rua enquanto observa as outras pessoas e os fantasmas que as perseguem. Imagino que Kurosawa ambicionou concretizar uma ou duas cenas assim, mas uma vez mais, limitações de recursos.

Tirando estes detalhes, Séance é um filme com bom ritmo que nos mantém investidos a cada frame, culminando num final aberto e curioso que, à semelhança de Cure, nos leva a questionar a legitimidade do que as personagens experienciam nas suas vidas e nós no ecrã, em estilo típico de Kiyoshi Kurosawa.

Segue uma das cenas aterradoras de Séance: