“Blonde” gerou muita publicidade e conversa antes da estreia, depois de se ter mostrado nos festivais, mas conclui-se que maioritariamente não tem sido a mais positiva — é aquela velha máxima: fale-se bem ou fale-se mal, mas fale-se.
O resultado para a Netflix foi o de, passados oito dias da sua estreia na plataforma, o filme já quase não se encontrar no Top 10. A velha máxima não gerou os frutos pretendidos ou, pelo menos, frutos duradouros — depois se assistirão a possíveis consequências.
Colocando de parte superficialidades, falar sobre o filme é o mais importante, até ao momento em que, na verdade, o seu conteúdo é tão explorador e barato que até as superficialidades introdutórias parecem mais interessantes.
Até quase ao seu final, “Blonde” toma a aparência de uma daquelas biografias meio artsy, próxima da linguagem do documentário, explorando vários tipos de estética, longe da biografia clássica, com uma cronologia certinha e baseada em factos.
Andrew Dominik diverte-se a experimentar técnicas diversificadas que se apoiam em fotografias reais, mostrando os primeiros passos de Marilyn Monroe através de aspetos de tela reduzidos, outros muito expandidos.
Quando “Blonde” está a uma hora do fim (e o filme tem sensivelmente três horas), sucede uma das mais fatídicas cenas, que é ao mesmo tempo a que demonstra o pior dos gostos, precipitando os momentos subsequentes para a hecatombe.
Não que estivesse tudo bem até então, mas permitia o benefício da dúvida. A partir dos chamados momentos de intimidade entre Marilyn e John F. Kennedy, fica definitivamente cunhada a verdadeira intenção de Dominik ao fazer “Blonde”.
De repente, percebe-se que toda a estética, ainda que errante, diversificada e experimental, não era tanto uma opção senão o desnorte do realizador quanto ao que pretendia do seu filme — e Dominik até ao momento não aparenta sabê-lo.
Mais do que um desnorte, é a percebida intenção de que a aleatoriedade visual vai facilmente passar por experimentalismo, quase com a afetação que caracteriza as divas e a deliciada manipulação dos espertos.
Com isto, a aposta estaria ganha, não fosse o espetador, no geral, e a crítica em particular estarem atentos e não caírem no engodo.
Não estão colocadas em causa as opções artísticas, mas o modo blasé, perto de desinteressado, com que Andrew Dominik constrói o filme. Com o público não se importa, como já assumiu, e isso é legítimo, mas fica a questão: o que verdadeiramente é importante? O ego do próprio, arrisca-se.
Baseado no livro de Joyce Calor Oates, que também não pretende ser fiel ipsis verbis à vida de Norma Jean, “Blonde” retrata Marilyn Monroe como um mero boneco, uma coitadinha submissa que chorava todos os dias ou pelo pai e pela mãe perdidos ou porque estava a ser esbofeteada pelo marido.
Ana de Armas tem aqui, provavelmente, o seu melhor papel até à data e apenas pode ser acusada de se ter dedicado de corpo e alma a um filme que não sabe captar Marilyn ou não consegue ir para lá da caricatura.
Todo o elenco é um desperdício de talento num filme deste gabarito, com nomes como Adrien Brody a interpretar Arthur Miller, Bobby Cannavale como Joe DiMaggio e marido de Monroe e Julianne Nicholson como mãe de Monroe. Um desperdício.
Acrescenta-se ainda à lista de desperdícios a belíssima banda-sonora, da autoria de Nick Cave e Warren Ellis, que Dominik retratou em “This Much I Know to be True”, documentário estreado este ano.
Não significa tudo isto que não seja necessário retratar a sociedade que “Blonde” retrata, muito pelo contrário. É uma acusação direta, sem pejo, a uma América do glamour que subjuga as mulheres, que as relega para segundo e terceiro plano, não lhes dando o mínimo de crédito criativo.
É ainda o necessário retrato da Indústria do cinema na longuíssima era pré #Metoo, embora Dominik mostre isso das mais cruas e chocantes maneiras, roçando a pornografia barata, fazendo com que a escolha tire o mérito ao conteúdo.
É interessante ainda a questão da duplicidade, da personagem de Marilyn só existir nos filmes, a distinção completa de Norma Jean, a mulher real que nunca aparece debaixo dos holofotes.
Esta teria sido a oportunidade de ouro para fazer estes aspetos brilhar mais do que uma Marilyn que se torna mais uma vez refém das mesmas críticas que a levaram ao desespero quando viva.
Em última instância, não é que “Blonde” não deva existir como filme, apenas não é necessário, nem do ponto de vista da narrativa, nem da criatividade, seja ou não verídica a sua história.
É, sobretudo, um filme que, não estando interessado na verdade, acaba por refletir as escolhas e visão de um realizador homem sobre a vida de uma mulher cujas experiências aquele não pode nem consegue ambicionar retratar.
Possivelmente, só um homem poderia considerar a infantilidade de colocar um feto CGI a falar uma vez, em direto, da barriga da mãe, quanto mais duas e, da segunda, proferir até acusações à mulher que o carrega.
Se é verdade que Dominik menciona ter-se esforçado para mostrar a opressão que Marilyn Monroe sofreu, não pode, contudo, querer fazê-lo pondo-se no lugar de uma mulher sem deixar de lado a sua visão sexista e enviesada. É caso para aconselhar: pergunte mais, fale com mulheres, peça mais opiniões entendidas.
É ainda um bom reflexo dessa mesma visão a necessidade de mostrar a atriz constantemente em contato com órgãos sexuais masculinos, em posições marcadamente humilhantes sem qualquer gosto estético — a não ser que a ideia fosse mesmo fazer um filme pornográfico e até nesse campo há certamente melhor que “Blonde”, no que toca a cenas de sexo degradantes da integridade feminina.
Sendo “Blonde” um artifício que não corresponde necessariamente à vida real de Monroe, a opção de mostrar esta Marilyn é o produto do desejo de a manchar, de manchar uma vida que nunca aparentou ter sido feliz, seja por marcada intenção ou, pior, profunda inconsciência.
“Blonde” não é ofensivo por enveredar pelo choque, muitos outros filmes já o fizeram e, embora possam dividir opiniões, são escolhas estilísticas, narrativas, dos seus autores.
“Blonde” é ofensivo porque é presunçoso sobre aquilo que um realizador com mentalidade dos séculos passados ainda acha relevante os espetadores verem no século XXI.
Fá-lo trazendo para destaque uma mulher que aqui é uma sombra daquilo que terá sido. Unidimensional, objetificada, humilhada (incluindo com as piores escolhas visuais em aberrantes cenas de violação), ficcionada, inventada. Se a liberdade criativa vale para tudo, bem que Andrew Dominik podia ter optado por inventar algo de muito melhor.
Classificação: ★