'Corre!' — Um Filme de Interiores

Estreou nas salas de cinema portuguesas a 7 de outubro o filme de suspense que já estava disponível na plataforma de streaming da Hulu em território norte-americano desde final do ano passado. Agora que os cinemas ganham fulgor, os espetadores têm a oportunidade de o ver no grande ecrã.

“Corre!” é o segundo filme do realizador Aneesh Chaganty, depois do seu sucesso “Pesquisa Obsessiva” (2018) e conta com a participação da veterana Sarah Paulson e a estreante Kiera Allen.

No que diz respeito ao argumento, à história propriamente dita, “Corre!” não apresenta grandes novidades e praticamente tudo aquilo que ali se vê já foi feito ou dito, mas isso não representa uma desvantagem à partida — quantos filmes não exploram o mesmo tipo de história?

A relação doentia de uma mãe (Diane) com a sua filha (Chloe) e o desequilíbrio da dependência emocional já foram exploradas antes, basta lembrar especificamente a série da HBO “The Act”, mas o modo como o filme nada em águas pouco profundas e se aproveita de um grande número de fórmulas óbvias traz-lhe algum opróbrio.

O brilho de “Corre!” reside sobretudo naquilo que as suas duas grandes atrizes desenvolvem tendo em conta a matéria-prima que lhes foi concedida. Nesse aspeto, tanto a mestria de Paulson neste tipo de papéis — não é por acaso que é atriz residente do horror/suspense de Ryan Murphy — como a ousadia de Kiera Allen fazem todo o trabalho.

A estrutura de quase todo o filme apoia-se numa muito boa premissa e não abandona quase nunca o espaço da casa que mãe e filha partilham. Enquanto se mantém dentro de portas, “Corre!” tem tudo para agarrar o espectador, vai desenrolando lentamente as diversas descobertas de Chloe, embora não se dedique a cinzelar com precisão as suas características morais nem as da sua mãe.

Fá-lo baseado no suspense da suspeita, em primeiro lugar, depois na certeza do que é descoberto e vive da expressividade das suas atrizes, sobretudo Allen, verdadeiramente impressionante na sua estreia, tendo em conta que contracena com um peso pesado. Não será arriscado dizer que ela é o filme.

Na certeza da expressividade de ambas as atrizes, não são raros os grandes planos, às vezes os muito grande planos (no caso de Sarah Paulson). Aí, é possível pressentir o arrepio, sobretudo nas deliciosas nuances que Paulson imprime a Diane, na fronteira entre o controlo e a completa falta de estribeiras.

A luz é igualmente importante neste jogo de sombras que se passa dentro de portas, muito mais do que no exterior, logicamente, apesar de a fotografia ser, no geral, consentânea com o espírito tenso da história — envelhecida, rigorosa, vívida, de cores neutras, mas assustadoras.

Por detrás da história, o facto de Kiera Allen ter o mesmo grau de incapacidade física que a sua personagem assume tão grande importância como a sua atuação, já que é a segunda atriz na história do cinema a representar nessa capacidade.

Ao mesmo tempo que “Corre!” chama a atenção para a questão da doença mental, na figura de Diane, também se transforma num marco para algo que nem sempre é óbvio para o espectador de cinema ou televisão: a representatividade e a igualdade de oportunidades.

Ultrapassado esse facto assinalável e a que muitos passará despercebido ao ver o filme, resta destacar o enorme talento de Kiera Allen, que consegue roubar o protagonismo a Paulson ou, pelo menos, partilhá-lo de forma absolutamente descontraída.

Infelizmente, “Corre!”, que tem no seu inicial registo claustrofóbico um dos seus grandes trunfos, não se dá tão bem na rua como em casa e na procura do tão desejado twist, acaba por pecar pelo excesso — quando a contenção e o despojamento tinham jogado muito a seu favor na melhor metade do filme.

Na procura da surpresa e da diferença (que estava debaixo do seu próprio nariz), o filme acaba por se tornar banal, perdendo a chama que o guiou inicialmente. Ainda assim, não deixa de ser um competente thriller com duas excelentes atrizes que mereciam muito mais do que o banho-maria estouvado do seu final.

Classificação: ★★½