A série sul-coreana “Kingdom” tornou-se num dos grandes sucessos da plataforma de streaming Netflix, com as suas duas temporadas já decorridas e uma terceira a caminho.
“Ashin of the North” surge para explicar como foi descoberta a misteriosa planta que ressuscita os mortos e trazer um contexto de história ainda mais rico e complexo à série.
É à volta de Ashin, a inesperada personagem feminina que aparece pela primeira vez no final da segunda temporada, que a maioria da trama se desenvolve, mas muitos dos conflitos focados na série são também aflorados.
Os elementos que fazem de “Kingdom” algo de mais especial do que “apenas” a extraordinária fotografia, realização e guarda-roupa, retornam em “Ashin of the North”, mas juntam-se-lhe novidades.
O interesse e foco dado à escrita, à trama, estão ainda mais refinados e as alterações de paisagem, que se muda para a região Norte do reino de Joseon, na fronteira com a China, trazem igualmente mudanças a nível emocional.
As cores idílicas do início do filme dão lugar paulatinamente a tons cada vez mais escuros e a fisionomia de Ashin mudará de forma progressiva para uma personagem cheia de ódio cujo negro do vestuário reflete o turbilhão de ideias que se desenvolvem ao longo da sua progressiva espiral de vingança.
À semelhança do que acontece na série, também o filme se vai focar em divisões, desta vez étnicas e fronteiriças, para além das já reconhecíveis ganância de poder, despotismo dos governantes e a pobreza em que a maioria da população vive.
O que faz de “Kingdom” um universo especial é o facto de os zombies servirem de pretexto para algo mais profundo que tem a ver com as divisões artificiais criadas pelos homens mais poderosos para alimentar os seus egos debilitados.
“Ashin of the North” menciona levemente o conflito do passado com a invasão do Japão na fronteira sul e destaca um outro conflito, interno, que tem a ver com a segregação de populações de origem étnica distinta, que não se integram em lado algum.
É o caso dos Jurchens, a população descendente das últimas dinastias chinesas antes da invasão Mongol que parcialmente se instalou, há cerca de 100 anos, em território Joseon e ganhou a designação de Pajeowi Jurchen — não são aceites pelos Jurchens nem por Joseon, apenas tolerados.
O equilíbrio periclitante quebra-se com um incidente ocorrido no território proibido de Pyesa-gun e todas as fragilidades voltam a estar à vista de todos. É este tipo de contexto que faz com que a série seja muito mais do que uma série sobre zombies e “Ashin of the North” é mais um passo seguro a consolidar esse sentimento.
“Ashin of the North” é, contudo, muito mais uma condensada história de amor, vingança e ódio do que a série alguma vez foi, trazendo para o centro uma personagem feminina forte que pertence a uma dinastia de renegados falsamente integrados num contexto social frágil e depauperado.
O que alimenta os zombies não é a carne ou o sangue humano e as questões que a sua existência encerra não germinam na morte, mas na vida vivida sem princípios de moralidade e compaixão — nada de novo na história da humanidade.
Por se focar principalmente em construir um enorme edificado de ideias, os zombies não são preponderantes neste especial — se bem que quando finalmente são vistos, continuam a ser aquela delícia supersónica e mortífera sobejamente conhecida da série.
O especial demora-se a contar a história tanto como a série e culmina num frenesim de zombies e vingança, desenrolando-se na última meia hora do filme o culminar de toda a tensão acumulada ao longo da primeira e mais longa parte.
Para além da mudança de ares e paisagens, “Ashin do Norte” introduz ainda uma outra novidade no seu catálogo: animais zombie. Estes são até os primeiros seres vivos infetados, o que constitui ao mesmo tempo uma pouco comum viagem na temática zombie. É novamente explicado o modo de contágio e recorrendo a efeitos de CGI, são mostrados dois exemplares de animal que transmitem a doença entre si.
Mais uma vez, uma cinematografia brilhante, uma excelente banda-sonora, um argumento coeso e preocupado, cheio de pormenores, sem cair nem no excesso nem na falta — no ponto certo.
Realizado por Kim Seong-hun, realizador responsável pelas duas temporadas, e escrito novamente por Kim Eun-hee, autora do argumento da série, conta nos principais papéis com a estrela sul-coreana Jun Ji-hyun como Ashin em adulta ou Park Byeong-eun como Min Chi Rok.
As atuações são sóbrias, mas muito expressivas, sobretudo o papel de Ashin, que vive sobretudo da mutabilidade na fisionomia da personagem à medida que se torna adulta e amargurada.
Um episódio especial que permite matar saudades aos fãs da série, mas trazer para o seu universo aqueles que ainda não viram a série, já que a história funciona perfeitamente sozinha e independente da série.
Começa como prequela e vai aproximando-se da linha temporal da série, explicando, pois, o encontro de Ashin com Seo-bi, que havia partido para Norte à procura das origens da planta.
Todos estes pormenores, aliados ao extremo bom gosto das imagens, o fantástico guarda roupa, o ritual que compõe as conversas entre os vários personagens, frequentemente nas sombras da noite, e até mesmo o facto de não recorrer constantemente ao fantástico como atrativo suculento — fazem de “Ashin of the North” um pequeno oásis de ideias.
Aposta na capacidade dos seus atores mostrarem emoções sem necessariamente as transmitir por palavras, o que lhes confere maior responsabilidade no modo como captam a atenção do espetador — isso encontra-se especialmente exposto no papel de Jun Ji-hyun.
Por tudo isto e ainda mais alguns twists subtil e sabiamente introduzidos na história, “Ashin of the North” é com toda a certeza uma excelente maneira de passar uma hora e meia na companhia de grande entretenimento.
Classificação: ★★★½