Onze (Millie Bobby Brown) a redescobrir os seus poderes

‘Stranger Things — Temporada 4, Vol. 1’ — A Maioridade dos Habitantes de Hawkins

A ansiedade da espera converteu-se em glória, estreada que está a primeira parte da Temporada 4 de uma das séries mais bem sucedidas da plataforma de streaming Netflix.

A primeira parte da Temporada 4 de “Stranger Things” estreou finalmente na Netflix, a 27 de Maio de 2022, e muito longa foi a espera dos fãs, que tiveram de aguardar pacientemente cerca de três anos para ver o que vinha depois do apoteótico final da temporada anterior.

Para muitos, tornou-se numa ligeira desilusão, para outros a melhor sequência de episódios da série até agora — neste segundo grupo insere-se a autora deste texto -, mesmo não tendo ainda estreado os dois últimos episódios.

Para isso, ter-se-á de esperar até 1 de Julho, mas entretanto “Stranger Things” e os irmãos Duffer mostraram, até agora, que dominam na perfeição a sua arte. Depois de três temporadas absolutamente frenéticas, ser capaz de chegar aqui, abrandar, fazer crescer a série, amadurecer os personagens, trazer gente nova e saber ouvir é pura jogada de mestre.

Com tudo isto, a série não perdeu nem um pouco daquilo que faz com que a cada episódio se queira sempre mais, até porque a presente temporada está construída para dar contexto aos personagens e explicar aquilo que ainda não foi explicado.

Isso inclui inúmeros piscares de olhos a referências culturais clássicas do cinema dos anos 80, mas também um enorme piscar de olho aos fãs que tanto se manifestam, tantas perguntas fazem e querem ver respondidas: os Duffer estão atentos e sabem agradar aos seus fãs.

Muito mais voltada para o terror da pesada, “Stranger Things” não hesita em deixar para trás um pouco da fantasia/horror mais voltado para o gore para transformar o mundo ao contrário num pesadelo do qual não se consegue acordar, pegando sobretudo no universo de “Pesadelo em Elm Street”.

Robert Englund como Victor Creel

Por um lado, a série viu-se a braços com o inevitável crescimento dos seus actores, que aqui começaram as suas carreiras quando ainda eram adolescentes. A opção de crescimento e amadurecimento da história era uma inevitabilidade, tendo em conta não só esse aspecto, mas também porque a temporada anterior tinha chegado ao culminar de um ritmo alucinante de aventuras.

Isso não significa que elas não continuam agora, muito pelo contrário, mesmo com os heróis de Hawkins divididos e mesmo com novos personagens introduzidos, como o metaleiro Eddie Munson, o solitário e frenético Argyle ou o insuspeito aliado de Hopper, o guarda Dmitri.

Os irmãos Duffer conseguem ainda resgatar personagens mais discretos e trazê-los para a ribalta, como Murray, que ganha novas competências como ser cinturão negro de karaté e piloto de aviões — esta última pouco dominada, mas a fazer lembrar os filmes de aventura dos anos 80.

Esta dinâmica tende a esquecer outros personagens, nomeadamente a marcante Erica Sinclair, irmã de Lucas, que aqui não tem metade das aparições que teve nas duas temporadas anteriores. Apesar de tudo, é bom saber que continua tão geek como sempre.

Esta nova temporada ganha ainda uma outra dimensão, muito mais aprofundada, que tem a ver com a saúde mental e o modo como as memórias reprimidas podem servir tanto de combustível impulsionador de boas ações, como deixar incapacitados quem as carrega sem as resolver ou confrontar.

É por isso que uma grande parte dos novos episódios é passada a mergulhar nas memórias de Onze, que é e sempre foi a grande chave para quase tudo o que se passou na série. Por um lado, é um meio de recuperar os seus poderes, mas por outro mostra a importância que toma o confronto com os traumas do passado, resolvendo-os para poder avançar para o futuro.

Reflexo, talvez, das mudanças que estes dois anos tiveram no dia-a-dia de quase toda a gente ou não, certo é que até neste ponto a série se encontra completamente sintonizada com o seu tempo e com as pessoas que religiosamente a seguem, tornando-se num apoio e inspiração através da arte.

“Stranger Things” não se esqueceu ainda da sua música, embora na nova temporada esse não seja o seu principal objectivo. Através dela, contudo, mostra como é influente, tanto para as novas gerações como para as mais velhas. Que o diga Kate Bush, que viu o seu “Running Up that Hill” chegar novamente aos tops do streaming de música 37 anos depois de a sua música ter estado nos tops.

Para isso contribuiu ser a música preferida da Max e estar presente num dos melhores momentos da série, de que aqui não se falará para não revelar pormenores a quem ainda não viu. É, verdadeiramente, a grande homenagem ao poder curativo da música, da abertura de novos horizontes, para além de revitalizar sonoridades que ao longo de tempo podem ficar esquecidas.

Ao mesmo tempo, a artista reagiu nas redes sociais com surpresa em relação ao poder que a série revelou também nessa dimensão, mostrando-se fã e estando ansiosa pela estreia dos dois últimos episódios.

Kate Bush não foi a única: os herdeiros de Ronnie James Dio, o malogrado vocalista de Black Sabbath e Rainbow, cederam ao Eddie Munson o patch que se encontra na parte traseira do seu blusão de ganga, já que aquele personagem é o metaleiro do grupo e fã de Dio.

Eddie Munson (Joseph Quinn) a tocar a sua querida

“Stranger Things” já não é só a série que mudou a televisão e as séries e trouxe para a ribalta a onda dos anos 80, é também a série que congrega toda a gente à sua volta pelas mensagens que transporta. O grupo de amigos que nunca deixou de se apoiar, que consegue transformar o mundo com essa força mesmo quando tudo parece impossível, que não deixa ninguém para trás: essa é uma das suas grandes forças e mensagem.

É ainda a série que continua a trazer para o centro uma enorme e muito bem produzida homenagem a todos aqueles filmes de aventuras com histórias muitas vezes inusitadas — muitos veem nisso uma pastilha elástica mastigada, mas podem já ter esquecido o quão divertidas essas aventuras foram na altura.

São os comunistas que fazem experiências secretas, as aventuras de avião do Alasca para a Rússia, a viagem de horas num Volkswagen pão de forma que também entregava pizzas, os homens de negro, as conspirações governamentais, os poderes sobrenaturais. Que outra série actual conseguiria juntar tudo isto e continuar credível?

Perguntar-se-ão: vale a pena perder uma quantidade louca de horas a ver os sete episódios disponíveis na Netflix? Vale cada segundo, mesmo que a série não seja perfeita em todos eles.

Nesta nova temporada, não está só em causa o investimento descomunal feito em cada episódio ou a até a sua duração incrivelmente longa (cada episódio ronda os 70 minutos e às vezes mais).

Está em causa o legado, o imaginário, o bom gosto colocado em cada pormenor, a grande fotografia, os excelentes jovens actores e os excelentes actores veteranos, mesmo com David Harbour ou Winona Ryder relegados para segundo plano, a sempiterna homenagem à boa música ou apenas à pop divertida dos anos 80, aos seus filmes clássicos, às suas roupas.

“Stranger Things” tem o enorme condão de dizer tanto aos novos como aos menos novos, tanto pelas memórias que traz de volta como pelas que cria e a nova temporada tem para mostrar, até agora, não só alguns dos seus momentos mais altos, mas alguns dos momentos mais altos da televisão de entretenimento destes anos recentes.

Classificação: ★★★★