Neste mês: histórias de crime interligadas e espremidas com mestria até restar uma polpa genial de humor negro; a raiva e angústia adolescente de uma banda mítica dá lugar a uma serenidade musical antes da tragédia e um simulador de futebol que levou milhões de jogadores a preferir ficar no banco em vez de dentro do terreno de jogo.
Filme: ‘Pulp Fiction’ (1994)
Vincent Vega (John Travolta) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson) são dois assassinos profissionais que trabalham fazendo cobranças para Marsellus Wallace (Ving Rhames), um poderoso mafioso. Vega vê-se obrigado a levar a mulher do seu patrão, Mia (Uma Thurman), a divertir-se numa noite em que se encontra sozinha, temendo passar dos limites. Enquanto isso, Butch Coolidge (Bruce Willis), um pugilista que foi comprado por Wallace para perder um combate, não cumpre a sua parte do acordo e agora precisa fugir do país juntamente com a sua esposa Fabienne (Maria de Medeiros).
A sinopse acima dificilmente resumiria toda a narrativa de ‘Pulp Fiction’ que é contada fora da sua ordem cronológica e que segue três histórias principais que se inter-relacionam. Ao todo são apresentadas sete sequências narrativas, incluindo algumas sob diferentes perspectivas, e que surgiram da mente de Quentin Tarantino e Roger Avary primeiramente em 1990 e quando o objectivo era escrever o guião de uma curta-metragem. Após algumas dessas ideias se terem materializado no argumento de ‘Cães Danados’, o bem recebido filme de estreia de Tarantino, o realizador norte-americano retomou a colaboração com Avary com visto ao próximo projecto. Inspirados pelas antigas revistas pulp, termo para identificar uma espécie de publicações feitas com papel barato e que continham histórias sensacionalistas de qualidade menor ou mesmo absurdas, a dupla escolheu o nome do filme e finalizou o argumento. A estrutura pouco convencional do mesmo não convenceu os maiores estúdios de Hollywood mas a Miramax (então recém-adquirida pela Disney) mostrou-se muito interessada, fechando negócio com o produtor Lawrence Bender. Rodado em pouco mais de dois meses e com um orçamento de apenas 8 milhões de dólares, Tarantino finalizou o filme com a ajuda da editora Sally Menke (colaboradora de longa data, tal como Bender) e levou a película ao Festival de Cannes de 1994, de onde saiu aclamado com a Palma de Ouro, o principal prémio do prestigiado evento francês de cinema.
Para dar vida às suas personagens, Quentin Tarantino recorreu a um misto de actores consagrados, estrelas em ascensão e jovens esperanças da representação. O cineasta recuperou a carreira de John Travolta (que havia atingido a fama nos anos 70 mas que tinha caído no “esquecimento” na década seguinte) e este acabou por ser nomeado para um óscar, assim como os seus colegas de elenco Samuel L. Jackson e Uma Thurman. ‘Pulp Fiction’ recebeu ainda nomeações para melhor filme, realizador, montagem e argumento original, tendo mesmo arrebatado a estatueta dourada relativamente a este último. No que diz respeito à composição musical, o filme nunca poderia ser nomeado… porque esta não existiu. A sua memorável banda sonora é composta apenas por canções já existentes que se adaptam perfeitamente aos vários momentos do filme, destacando-se a versão dos Urge Overkill do clássico de Neil Diamond ‘Girl, You’ll Be a Woman Soon’, ‘Son of a Preacher Man’ de Dusty Springfield e ‘Misirilou’, uma canção tradicional com origem no antigo Império Otomano aqui na versão rock de 1962 por parte do norte-americano Dick Dale, seguramente a mais emblemática de toda a película.
O meu primeiro contacto com o cinema de Quentin Tarantino chegou com o seu segundo filme e imediatamente chamou a minha atenção. Que filme era este, tão diferente do que estava habituado a ver até então? Como adolescente, era mais frequente assistir a filmes de acção com personagens duros ou comédias desmioladas que passavam na televisão nas tardes de fim-de-semana, contudo ‘Pulp Fiction’ não se enquadrava nesses géneros, apesar de conter elementos (por vezes satiricamente subversivos) de ambos. Com o passar do tempo e após mais visionamentos do filme, passei a compreender e a gostar ainda mais do estilo cinematográfico de Tarantino (que, como eu, a nível de curiosidade, também trabalhou num clube de vídeo), caracterizado por narrativas não lineares pouco convencionais, um peculiar humor negro e longas trocas de diálogo, muitas vezes sobre situações mundanas e que lhe dão um toque caricato no contexto em que se inserem. O realizador e argumentista nascido no estado do Tennessee continuaria a deixar a sua marca e estilo único por toda a sua carreira, recheada de outros filmes que muito aprecio, mas ‘Pulp Fiction’ continua a ser, para mim, a sua obra-prima.
Álbum: ‘MTV Unplugged in New York’ — Nirvana (1994)
Fundados em 1987 por Kurt Cobain e Krist Novoselic, inicialmente sob o nome ‘Sellouts’ e identificados como uma banda de tributo aos Creedence Clearwater Revival, os Nirvana passaram por diferentes nomes e estilos musicais ligados ao rock até se estabelecerem como se deram a conhecer ao mundo com o álbum de estreia ‘Bleach’, de 1989. O primeiro trabalho da banda originária de Aberdeen, no estado de Washington, não seria um grande sucesso, muito por culpa da pouca divulgação que teve na altura. Cobain (voz e guitarra) e Novoselic (baixo) decidiram então trocar de produtor e editora, assinando com Bryan “Butch” Vig e a DGC Records, respectivamente. A alteração deu claramente frutos, com o álbum seguinte ‘Nevermind’ (1991), já com Dave Grohl na bateria, a tornar-se um fenómeno cultural dos anos 90. A popularidade dos Nirvana não dava sinais de abrandar, com o terceiro trabalho ‘In Utero’, de 1993, a ser aclamado pelos críticos, mas o suicídio de Kurt Cobain no ano seguinte veio pôr um súbito ponto final na existência da banda norte-americana, um dos símbolos maiores do estilo de rock alternativo e subcultura grunge.
‘MTV Unplugged’ é uma série de concertos acústicos organizados pelo canal de televisão sediado em Nova Iorque. A estreia deu-se em 1989, com uma actuação dos britânicos Squeeze, e desde então já foram transmitidos centenas de concertos de artistas e bandas neste formato, sem recurso a instrumentos eléctricos, na sua maioria dando origem a álbuns. A série foi presença regular no canal norte-americano até 1999 e menos frequente entre 2000 e 2009 (muitas vezes referida nessa década como ‘MTV Unplugged №2.0 ‘), com actualmente a registarem-se actuações pontuais. O primeiro grande sucesso de um artista a solo no formato unplugged deu-se com Eric Clapton em 1992, cujo respectivo lançamento em CD vendeu 26 milhões de cópias, tornando-se no álbum ao vivo mais vendido de sempre. A nível de bandas, especialmente as que se caracterizavam por um estilo mais agressivo e “barulhento”, o formato tardava a seduzir nomes mais sonantes até que os Nirvana vieram quebrar esse paradigma com a sua actuação de 18 de Novembro de 1993, cerca de cinco meses antes da morte de Kurt Cobain.
‘MTV Unplugged in New York’ afastou-se das habituais convenções de um concerto deste tipo, com os Nirvana a optarem por não tocar os seus maiores êxitos mas sim muitas das suas músicas menos conhecidas na altura, para além de versões de outras canções de bandas e artistas menos célebres. Com a excepção de ‘The Man Who Sold the World’ do lendário David Bowie, os Nirvana tocaram músicas dos Vaselines, Lead Belly e dos Meat Puppets, cujos membros Cris e Curt Kirkwood juntaram-se em palco para actuar em conjunto. Quanto ao próprio material, ficaram de fora êxitos incontornáveis como ‘Smells Like Teen Spirit’, ‘Lithium’ ou ‘In Bloom’ em favor de ‘About a Girl’, ‘Polly’ ou ‘All Apologies’, canções que não tinham sido lançadas como singles dos seus respectivos álbuns. Desta forma, ‘Come as You Are’ foi o único single a marcar presença no alinhamento de todo o concerto. Isso não impediu, nem de perto nem de longe, de ‘MTV Unplugged in New York’ tornar-se um tremendo sucesso de vendas quando foi lançado em CD, a 1 de Novembro de 1994. A chocante morte de Cobain uns meses antes certamente contribuiu para a popularidade do álbum e do próprio formato acústico, com os Nirvana a mostrarem-se capazes de transcender o som grunge que os caracterizava, o que abriu portas a que mais bandas pudessem arriscar e gravar neste modelo.
Os Nirvana foram uma das bandas preferidas e mais populares da minha adolescência, mesmo após o término da sua carreira. Com o surgir de ‘Nevermind’, várias canções passavam nas rádios, nos canais de música e nos walkmans ou discmans de cada um. A Portugal vieram uma única vez, em 1994, a um apinhado Dramático de Cascais. Foi o primeiro concerto da fase europeia da digressão de suporte ao álbum ‘In Utero’ que infelizmente nunca chegaria ao fim. Lembro-me de estar na escola quando saiu a notícia do suicídio de Kurt Cobain e de partilhar a tristeza da mesma com colegas. Dá que pensar o que nos poderia trazer de futuro a banda ou mesmo Cobain a solo, especialmente depois de ouvir este fabuloso álbum acústico, que apresentou um som mais próximo de uma espécie de folk rock ao qual a voz característica do líder e principal compositor dos Nirvana se adaptou muito bem.
Videojogo: ‘Championship Manager ‘93’ (1993)
‘Championship Manager’ é uma série de simuladores de gestão futebolística que permite ao jogador colocar-se na posição de treinador de uma equipa e com funções abrangentes no seio do mesmo clube. Criado pelos irmãos Paul e Oliver Collyer, fundadores da futura Sports Interactive, o primeiro jogo da série foi lançado em 1992 para MS-DOS, Amiga e Atari ST e iniciou uma dinastia sem rival nos anos sequentes, tornando ‘CM’ a mais popular série do género no resto da década de 90 e início da seguinte, batendo recordes de vendas a cada nova edição por época. Em 2003 registar-se-ia uma cisão entre a produtora Sports Interactive (SI) e a editora Eidos e a equipa imbatível dividiu-se em duas. A SI ficou com a base de dados e o motor do jogo, avançando para a produção da série ‘Football Manager’ enquanto que a Eidos reteve o nome e o interface, juntando-se à BGS para produzir os próximos jogos. Inicialmente, os números de vendas das duas séries rivais equipararam-se mas a SI viria a ganhar de “goleada”, sendo ‘Football Manager’ o verdadeiro herdeiro da franquia antiga, enquanto que o renovado ‘Championship Manager’ só duraria na sua versão completa até 2010.
Ainda que tenha sido o jogo que deu início ao fenómeno de vendas, o original ‘Championship Manager’, de 1992, não foi propriamente um sucesso. Escrito em linguagem BASIC, o jogo apresentava muitas limitações e desapontava os fãs do desporto-rei pois não apresentava os nomes reais dos jogadores, entre outras falhas. Foi somente no ano seguinte, com o lançamento de ‘Championship Manager ‘93’ que os fãs de futebol e estratégia ficaram convencidos. Desenvolvido em linguagem de programação C pelos irmãos Collyer e editado pela Domark, o jogo apresentava notáveis melhorias e novidades em relação ao seu antecessor, como por exemplo: possibilidade de contratar jogadores de clubes estrangeiros; maior número de comentários ao jogo; tempo de compensação das partidas; existência de mais prémios individuais; mais fotos de fundo; melhoria nos tempos de carregamento e a implementação da recém-criada Premier League, para além da presença dos nomes reais dos futebolistas. Também por vezes referido como ‘Championship Manager 93/94’ por dizer respeito a essa temporada de futebol, o simulador deu origem a ‘Championship Manager Italia’, uma versão com o mesmo motor de jogo e que permitia orientar equipas das duas principais divisões do campeonato italiano.
A impressionante base de dados da Sports Interactive, alimentada a cada versão do jogo com o contributo de centenas de colaboradores que recolhem informações sobre clubes, staff e jogadores das divisões de topo até às distritais, tem servido de auxílio a treinadores reais. José Mourinho, treinador português do Tottenham Hotspur, foi recentemente “apanhado” com o videojogo instalado no seu computador pessoal e Ole Gunnar Solskjær, técnico norueguês do Manchester United, já antes referira que acompanha o jogo desde os seus tempos de futebolista profissional. E se há vários casos de jogadores muito jovens no CM/FM que com o passar das épocas virtuais tornar-se-ão grandes craques como na realidade (veja-se o caso de Cristiano Ronaldo, que surgiu pela primeira vez no jogo com 16 anos na edição ‘01/02’ e que também ali dispararia para uma carreira brilhante nas temporadas seguintes), também é verdade que surgem inúmeros “miúdos maravilha” cujo desempenho nos relvados nunca chegou sequer perto do prometido no mundo virtual. A lista é quase interminável, pois a cada versão surgiam prodígios novos, mas é impossível não mencionar o nome de Tó Madeira, avançado do modesto Clube Desportivo de Gouveia. Surgido na mesma versão em que apareceu pela primeira vez Cristiano Ronaldo e ainda mais promissor que o então juvenil do Sporting Clube de Portugal, Tó Madeira tinha uma grande diferença a relação a este: não era real. António Lopes, colaborador da SI, ofereceu-se para fornecer dados do plantel do Gouveia e acabou por se incluir no mesmo, com estatísticas muito generosas a nível do potencial que iriam tornar Tó Madeira um dos melhores jogadores do jogo nas épocas seguintes, uma máquina de golos imparável. A SI só se deu conta do embuste depois de lançar o jogo e de Tó Madeira começar a impressionar nos relvados virtuais por todo o mundo, tendo retirado o falso jogador da sua base de dados aquando da actualização lançada a meio dessa época.
Se considerarmos todas as versões de ‘Championship Manager’/’Football Manager’ como um todo, é seguro dizer que foi o jogo que mais tempo joguei em toda a minha vida. O facto de destacar a versão ‘Championsip Manager ‘93’ e não qualquer outra posterior (em que o grafismo e a animação evoluíram e permitiam ver o próprio encontro ou lances mais importantes a acontecer, em oposição ao relato por texto das primeiras versões) tem a ver com o facto de ter sido a primeira que experimentei. Os jogos de estratégia de futebol para mim não eram novidade pois o ZX Spectrum tinha uma variedade assinalável de títulos à escolha mas este foi o primeiro que corri num computador pessoal e, aliado ao facto de já ser um adolescente e ‘CM’ parecer mais “adulto”, contribuiu para me sentir mais “treinador”. Não consigo dizer se foi causa ou consequência do jogo ou apenas uma coincidência feliz mas é a partir da época de 1993/1994 que o meu gosto e interesse por futebol cresce exponencialmente, apesar de já torcer pelo meu clube desde criança e de já ter ido a estádios de futebol antes. O interesse pelo desporto-rei era partilhado por amigos, com quem jogava à bola na rua, trocava cromos e disputava a edição de 93/94 do CM (inicialmente apelidado de “Champ” entre nós) e também a sua versão italiana e seguintes. Nesses tempos lembro-me de fazer temporadas com vários “aspirantes a treinador” em casa de amigos em que por vezes havia alguém a fazer desesperar os restantes com as suas tácticas demoradas. A solo foram muitas épocas feitas, diversos clubes, alguns feitos memoráveis e também frustrações, com possivelmente um rato ou teclado a serem alvos da ira de um golo decisivo sofrido nos descontos. Faz “parte”.