Total 90s — IV

Neste mês: a hora da refeição é sagrada e foi servido um óscar acompanhado de favas e um bom Chianti; silêncio que se vai tocar o rock entre duas terras ibéricas e uma banda desenhada interactiva na qual o vilão é que escreve a história aos quadradinhos.

Filme: ‘O Silêncio dos Inocentes’ — The Silence of the Lambs — (1991)

Clarice Starling (Jodie Foster) é uma jovem agente estagiária do FBI recrutada de forma a colaborar na missão de descobrir o paradeiro de “Buffalo Bill” (Ted Levine), alcunha dada a um assassino em série que vai matando jovens raparigas com o intuito de lhes retirar a pele. Para levar a bom termo a sua tarefa e conhecer a identidade do assassino, o FBI incumbe Clarice de pedir informações a Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), psicopata preso por homicídio e canibalismo e que fora outrora um famoso psiquiatra. Para seu espanto, Clarice descobre em Lecter um ser com gostos requintados em termos de arte e de música. Quando a filha de uma senadora é raptada por Buffalo Bill, a talentosa agente federal procura obter pistas junto do Dr. Lecter, prometendo-lhe um regime de prisão perpétua num sítio mais aprazível. Entre eles estabelece-se um perigoso jogo de confidências que levam o perigoso condenado a interessar-se pelo perfil psicológico da investigadora e a conseguir que ela revele o seu lado mais vulnerável.

Lançada em 1986 com o nome ‘Caçada ao Amanhecer’, a primeira adaptação para o cinema de uma obra literária do escritor Thomas Harris contendo a personagem Hannibal Lecter foi recebida com relativa indiferença por parte de público e crítica. Realizado por Michael Mann e com o escocês Brian Cox no papel (secundário) de Lecter, o filme baseou-se no romance ‘Dragão Vermelho’ de 1981, na altura também acolhido de forma modesta. Harris voltaria a recorrer à sua personagem mais famosa nas páginas do seu livro seguinte — ‘O Silêncio dos Inocentes’, de 1988. Desta vez, o romance foi um grande sucesso, arrebatando vários prémios e aguçando o apetite de Hollywood para mais uma adaptação ao grande ecrã. Uma parceria entre a Orion Pictures e o actor Gene Hackman permitiu assegurar o financiamento dos direitos da obra de Harris e Ted Tally foi contratado para escrever a adaptação. Hackman acabaria por abandonar o projecto e o cineasta nova-iorquino Jonathan Demme foi o escolhido para realizar o filme. Jodie Foster, entusiasta do romance original, ganhou o papel de Clarice Starling e o galês Anthony Hopkins, até então um actor de 54 anos pouco conhecido do grande público, assegurou o papel de uma vida ao interpretar o icónico Dr. Hannibal Lecter.

‘O Silêncio dos Inocentes’ conseguiu a proeza de arrebatar as cinco principais estatuetas da Academia. Na cerimónia de 1992, saíram premiados Hopkins (Melhor Actor), Foster (Melhor Actriz), Tally (Melhor Argumento Adaptado), Demme (Melhor Realizador) e, como cereja no topo do bolo, a própria película foi escolhida como Melhor Filme. Foi apenas a terceira vez que tal aconteceu na história dos Óscares, depois de ‘Uma Noite Aconteceu’ (1934) e ‘Voando Sobre Um Ninho de Cucos’ (1975) também terem sido premiados com as “Cinco Grandes” da Academia. A obra de Demme também esteve nomeada para melhor montagem e som mas os grandes alicerces do seu triunfo residem nas prestações fenomenais de Jodie Foster e Anthony Hopkins e da sua tensa química no ecrã, apesar de partilharem apenas quatro cenas juntos e do próprio Hopkins só aparecer em menos de 25 minutos de todo o filme, um dos mais reduzidos tempos de ecrã de sempre para um intérprete vencedor do Oscar de Melhor Actor Principal. Ao intenso olhar fixo sem pestanejar e discurso manipulador de Lecter, Clarice responde com uma determinação que disfarça uma vulnerabilidade contida. Um quid pro quo notável entre personagens literariamente ricas (uma espécie de “Bela e o Monstro”) aqui superiormente interpretadas pela dupla de actores. Refira-se que ‘Hannibal’, realizado em 2001 por Ridley Scott, voltaria a reunir as personagens, embora desta vez com Julianne Moore no papel de Clarice Starling e sem, previsivelmente, o mesmo brilhantismo. Hopkins interpretaria Lecter por uma terceira e última vez no ano seguinte em ‘Dragão Vermelho’, um remake completo da primeira obra escrita por Harris, onde partilhou o protagonismo no ecrã com Edward Norton.

Os assassinos em série tornaram-se um frequente ponto de referência em filmes, documentários, ficção televisiva, romances ou mesmo videojogos. O sistema global de mass media, uma característica ou atributo da modernidade, permitiu uma curiosidade crescente do público com o modus operandi desses assassinos e o debate sobre o que os levou estes a cometer os seus hediondos crimes. Tradicionalmente o comportamento dos assassinos em série era visto através de uma estrutura psicológica, culpando factores frequentes como má paternidade, distúrbios mentais ou um passado de abusos físicos ou psicológicos. Estudos sociológicos mais recentes apontam para reflexos distorcidos dos próprios valores da sociedade como a causa desse comportamento homicida. Quando escreveu a personagem de Hannibal Lecter, Thomas Harris optou por não elaborar sobre essa mesma causa do seu comportamento homicida e canibalesco, tornando a mesma ainda mais aterradora, enigmática e imprevisível. Jonathan Demme foi fiel à mesma linha e acabou por dar ao mundo, através da interpretação memorável de Anthony Hopkins, um dos vilões mais memoráveis da história do cinema. Creio que ‘O Silêncio dos Inocentes’ foi verdadeiramente o primeiro thriller que vi (quando estreou na televisão portuguesa), com o género a situar-se entre os filmes de acção com investigação criminal e os de terror. Há quem a considere mesmo uma obra de horror (e nesse sentido a única do género de sempre a ser premiada com a estatueta de melhor película) mas discordo de tal afirmação, com a sequência final de notável montagem paralela (também conhecida como técnica de edição cross-cutting) apenas um dos exemplos característicos de um thriller que haveria de influenciar vários outros seguintes.

Canção: ‘Entre dos tierras’ — Héroes del Silencio (1990)

Os Héroes del Silencio foram uma banda de rock espanhola formada em Saragoça no ano de 1984 pelo guitarrista Juan Valdivia e pelo vocalista Enrique Bunbury. O quarteto base seria completado através de Joaquín Cardiel (baixista) e Pedro Andreu (baterista) a tempo da gravação do primeiro álbum de originais — ‘El Mar No Cesa’, de 1988. Canções como ‘Mar adentro’ e ‘Héroe de leyenda’ (esta última já presente no EP homónimo de estreia) reforçaram a aposta da editora EMI no grupo, que alcançaria rapidamente o disco de platina. Algo descontente com a produção ligeiramente pop do primeiro trabalho, contrariada com prestações mais agressivas e enérgicas ao vivo, a banda escolheu o inglês Phil Manzanera como produtor do seu próximo álbum — ‘Senderos de Traición’. O antigo guitarrista principal dos Roxy Music conseguiu capturar a essência dos Héroes na combinação de guitarras celtas e ritmos de metal, uma espécie de fusão de sons entre o rock gótico e o hard rock, complementado com letras mais profundas, poéticas e verbalizadas de forma notável por Bunbury. Estes “caminhos de traição” de 1990 foram “percorridos” além Espanha, com o álbum a atingir a platina também na Alemanha e na Suiça, muito por culpa do sucesso do seu single inaugural.

‘Entre dos tierras’ foi a escolha da banda como primeira canção de promoção do seu segundo álbum de originais e a decisão não podia ter sido mais acertada. O tema tornou-se o mais conhecido da história da banda em termos internacionais e uma espécie de imagem de marca desta, com guitarras proeminentes acompanhadas de vários efeitos e poderosas vocalizações. ‘Senderos de Traición’, considerada pela própria banda como a sua melhor obra e presença habitual cimeira nas listas de eleição de álbuns de rock em espanhol, continha ainda outras canções dignas de destaque como ‘Maldito duende’ ou ‘Hechizo’. A colaboração com Phil Manzanera continuaria em ‘El Espíritu del Vino’ (1993), o terceiro trabalho de originais. Financeiramente o mais bem-sucedido e suportado por uma extensa digressão composta por 134 concertos espalhados pela América e pela Europa (incluindo três espectáculos pela primeira e única vez no nosso país em Lisboa, Porto e Cascais), o álbum que deve o seu nome a um poema do francês Charles Baudelaire caracteriza-se por letras mais crípticas e uma maior complexidade instrumental. Devido à necessidade da presença de uma segunda guitarra nas composições, o próprio Manzanera contribuiu para a gravação como guitarrista rítmico e o americano Alan Boguslavsky foi contratado para acompanhar a banda na referida digressão, intitulada ‘El Camino del Exceso’ — o nome de uma das canções de ‘El Espíritu del Vino’. Para além desta, destacam-se também ‘La sirena varada’ e ‘Nuestros nombres’, o primeiro single lançado.

Para o quarto álbum, os Héroes del Silencio voltariam a apostar numa mudança de produtor. O prestigiado Bob Ezrin, que na sua carreira trabalhou com bandas e artistas como Alice Cooper, Kiss ou Pink Floyd foi o eleito para produzir ‘Avalancha’, de 1995. Provavelmente o disco de som mais “pesado” até então e uma derradeira tentativa de penetrar no difícil mercado norte-americano, o mesmo já contou com Boguslavsky como membro oficial. Os singles ‘Iberia sumergida’ e ‘La chispa adecuada’ tiveram honras de videoclipe, assim como o tema que dá nome ao álbum, marcando também presença como canção disponível para tocar no videojogo ‘Guitar Hero III: Legends of Rock’. O quarteto de Saragoça voltaria novamente a embarcar numa gigante digressão, que duraria 18 meses e que teria ainda mais concertos que a anterior, mas que acabaria por ditar o fim o da banda em 1996. O cansaço acumulado acentuou os conflitos já existentes no seio do grupo (especialmente entre Enrique Bunbury e Juan Valdivia) e a separação foi anunciada em conferência de imprensa. Bunbury iniciaria uma bem-sucedida carreira a solo no ano seguinte, embora com um estilo musical distinto e sem arrastar as massas do seu tempo com os Héroes, e os restantes membros da banda mantiveram-se relativamente discretos em termos de colaborações musicais.

O meu primeiro contacto com a música dos Héroes del Silencio deu-se a partir do momento em que um amigo e vizinho do prédio em frente ao nosso emprestou o CD ‘El Espíritu del Vino’ ao meu irmão mais velho. Confesso que nunca tinha ouvido falar da banda nem tinha qualquer referência de um grupo espanhol de rock mas a verdade é que o seu som rapidamente convenceu os três irmãos da casa. Quem acabou por ficar mais entusiasmado foi o meu irmão do meio, que tratou de adquirir os dois álbuns anteriores e haveria de comprar o seguinte também. Ouvida a discografia completa, o meu álbum preferido tornou-se ‘Senderos de Traición’ e poderia ter sido o destaque deste artigo mas elegi antes a canção ‘Entre dos tierras’ pela sua maior notoriedade e por ser uma das minhas favoritas de todos os anos 90. Era frequente passar em discotecas e bares afectos a música rock desde essa década e nas seguintes e a reacção efusiva da maior parte do público ao primeiro acorde de guitarra mostrava que já a conheciam, ainda que possivelmente sem saber o seu nome ou de que banda se tratava. Foi com tristeza que recebi a notícia da dissolução da mesma em 1996 e, mais tarde, com alegria quando soube que o quarteto original se voltou a reunir em 2007 para uma série limitada de dez concertos espalhados pelo continente americano e pela sua Espanha natal. Provou ser apenas um regresso pontual, com Bunbury a retomar a sua carreira a solo logo depois, mas ainda mantenho a esperança de ir a um concerto dos Héroes del Silencio, seguramente uma das bandas que mais gostaria de ver e ouvir ao vivo. Por agora não há sinais que indiciem um retorno aos palcos mas parafraseando uma das suas letras: Para siempre? No hay nada para siempre!

Videojogo: ‘Comix Zone’ (1995)

Sketch Turner é um artista de banda desenhada e músico de rock que está a trabalhar no seu próximo livro chamado Comix Zone. É a história sobre a tentativa do Império do Novo Mundo defender a Terra de uma invasão de alienígenas renegados, uma ideia proveniente dos sonhos e pesadelos estranhamente vívidos de Sketch. Numa noite de tempestade, um raio atinge a sua mesa de trabalho e as suas páginas, fazendo com que Mortus, o vilão da história, escape para o mundo real, trocando de lugar com Sketch e prendendo-o na sua própria criação. Dentro da banda desenhada, o artista alia-se a Alissa Cyan, líder da resistência contra os extraterrestres. Mortus tratará de destruir Sketch desenhando os inimigos e buscará tornar-se de carne e osso no processo. O objetivo de Sketch é derrotar o vilão, salvar Alissa e conseguir assim sair da sua história aos quadradinhos.

A origem do conceito do jogo provém de um vídeo de demonstração animado por Peter Morawiec para o Commodore Amiga em 1992 intitulado ‘Joe Pencil Trapped In The Comix Zone’, exibindo como os elementos de jogabilidade e banda desenhada se misturariam. O estilo já havia sido trabalhado vagamente pela Ocean Software em ‘Batman: The Caped Crusader’, de 1988, mas ‘Comix Zone’ desenvolveu a ideia a tal ponto que a sua produtora Sega solicitou e obteve mesmo uma patente para um “sistema de criação de videojogo que simula uma história em banda desenhada”. Desenhado por Morawiec e programado por Adrian Stephens, o jogo é uma mescla de beat ’em up com algumas sequências de plataformas e de resolução de puzzles de forma a poder escolher o caminho mais seguro de progressão na história. No papel de Sketch, o jogador terá que ultrapassar três episódios distintos, cada um com duas “páginas”, e contará com a ajuda de Roadkill, o seu rato de estimação.

Lançado em 1995 para a Mega Drive e para PC, o jogo trazia dentro da sua embalagem um CD de música como bónus. Howard Drossin, compositor norte-americano com diversas colaborações em bandas sonoras de filmes e videojogos, foi responsável por toda a música de ‘Comix Zone’ e alargou o seu contributo ao gravar várias canções baseadas no seu trabalho instrumental com uma banda real em estúdio. O resultado foi uma espécie de EP com seis faixas por parte da banda criada para o efeito — ‘Roadkill’, com o próprio Drossin na guitarra e parcialmente na voz. A gravação poderá não ser brilhante mas captura perfeitamente o zeitgeist musical da época, em que o grunge e o rock alternativo eram muito populares entre os gostos dos jovens. A influência de bandas como os Nirvana, Stone Temple Pilots ou os Smashing Pumpkins em algumas das faixas do CD é notória.

A adolescência é uma idade de rápidas transformações e o gosto em videojogos também não é imune a essas alterações. Se em poucos anos anteriores jogos como ‘Sonic the Hedgehog’ (1991) pareciam para mim a melhor coisa do mundo, alguns anos depois já davam a ideia de serem demasiado infantis ou menos interessantes. A meio da década de 90, os meus gostos concentravam-se mais em jogos de desporto e de luta, deixando para trás os de plataformas. Foi então que surgiu ‘Comix Zone’, que creio ter sido uma prenda do meu irmão mais velho. Apesar de ser, na sua essência, um jogo em que abrimos caminho à base de socos e pontapés, também temos várias situações próprias de jogos de plataformas e alguns quebra-cabeças para descortinar. Gostei imediatamente do jogo, especialmente toda aquela estética de banda desenhada tipo Marvel, um formato que já consumia, em oposição às histórias com personagens mais pueris da Disney. Para além disso, o jogo estava recheado de piadas sarcásticas, próprias de quem estava preso no seu próprio livro, e continha uma banda sonora cativante, tudo pontos a favor para considerar Sketch Turner e o seu ‘Comix Zone’ como cool. O jogo viria a ser incluído em diversas colectâneas de títulos clássicos da Mega Drive lançados para consolas de gerações seguintes, o que me permitiu voltar a jogá-lo, e o CD bónus de música ainda anda por vezes pelo leitor do meu carro. Well done, Turner!