Total 90s — IX

Neste mês: a escolha entre um comprimido azul e um vermelho que pode libertar a humanidade; grandes batidas techno e metais pesados a combinarem perfeitamente em rede e um herói “fala-barato” de dedo rápido e piada fácil que é a única esperança do planeta.

Filme: ‘Matrix’ — The Matrix — (1999)

Thomas Anderson (Keanu Reeves) é um jovem programador informático atormentado por estranhos pesadelos nos quais encontra-se conectado por cabos e contra sua vontade, num imenso sistema de computadores do futuro. À medida que o sonho se repete, o próprio começa a ter dúvidas sobre a realidade. Por meio de um encontro com os misteriosos Morpheus (Laurence Fishburne) e Trinity (Carrie-Anne Moss), Thomas descobre que é, assim como outras pessoas, vítima da Matrix, uma simulação e um sistema inteligente e artificial que manipula a mente das pessoas, criando a ilusão de um mundo real enquanto usa os cérebros e corpos dos indivíduos para produzir energia. Morpheus, entretanto, está convencido de que o jovem Anderson ou “Neo” é o aguardado messias capaz de enfrentar a Matrix e conduzir as pessoas de volta à realidade e à verdadeira liberdade.

Em 1994, as irmãs norte-americanas Lana e Lilly Wachowski (na altura os irmãos Larry e Andy Wachowski) venderam o argumento de ‘Assassinos’ (1995) à Warner Bros, o que lhes garantiu um contrato de mais dois filmes. ‘Bound — Sem Limites’ (1996) significou a estreia na realização e a sua boa recepção por parte da crítica levou a dupla a pedir ao estúdio para também dirigir ‘Matrix’. O conceituado produtor Joel Silver juntou-se ao projecto e ajudou a convencer a Warner a investir os cerca de 60 milhões orçamentados. Will Smith foi umas das primeiras escolhas para o papel de Neo mas acabou por rejeitar a oferta por alegadamente não compreender muito bem o conceito da obra da irmandade Wachowski. Seguiram-se os nomes de Johnny Depp e Keanu Reeves e o último acabou por ser escolhido, em sintonia com as ideias filosóficas do filme e esperançado em recuperar a carreira algo adormecida desde o êxito ‘Speed — Perigo a Alta Velocidade’ de 1994. Para o papel de Morpheus, Laurence Fishburne ganhou a corrida a Val Kilmer e Gary Oldman e para Trinity a escolha recaiu sobre a pouco conhecida actriz canadiana Carrie-Anne Moss. Destaque ainda para as presenças do veterano Joe Pantoliano como Cypher e de Hugo Weaving, actor britânico radicado na Austrália, na pele do antagonista Agente Smith.

‘Matrix’ foi aclamado pela crítica especializada, amealhando 465 milhões de dólares a nível mundial e arrebatando 4 óscares e inúmeros outros prémios mas o seu maior reconhecimento foi o legado que deixou na história do cinema. Como exemplo de obra de cyberpunk, um dos subgéneros da ficção científica, o filme da dupla Wachowski foi buscar muita da inspiração das suas cenas de acção à animação e filmes de artes marciais asiáticos e acabou por influenciar inúmeras subsequentes produções de Hollywood especialmente no uso do efeito visual conhecido como bullet time (ou “flo-mo”). Trata-se de uma técnica na qual um objecto em movimento é aparentemente congelado enquanto a câmara gira “milagrosamente” em seu redor como se o tempo e a gravidade estivessem em pausa. Isto confere à acção liberdade para assumir contornos visuais surreais, tornando lícitos os efeitos sobre-humanos no contexto da realidade virtual, à medida que Neo e os seus pares fazem download de aptidões especiais para potenciar o seu subterfúgio.

Vi ‘Matrix’ pela primeira vez quando estreou por cá e saí fascinado da sala de cinema, assim como grande parte das pessoas presentes naquela sessão. Não me lembro de acabar de ver um filme e de sentir tanto burburinho entre os espectadores à saída, comentando vários aspectos do filme de uma forma entusiasmada. Os efeitos especiais dominavam os comentários mas a verdade é que a longa-metragem da dupla Wachowski está longe de ser apenas um estilizado filme de ficção científica repleto de assombrosas inovações técnicas. É também uma obra passível de leituras mais profundas e com numerosas referências a ideias filosóficas e religiosas. Estava no meu primeiro ano de faculdade do curso de Sociologia e um professor aconselhou os alunos a verem o filme devido às alegorias e reflexões sociológicas que o mesmo levanta. De facto, os actores principais foram aconselhados na pré-produção a ler obras como ‘Simulacros e Simulação’ do sociólogo francês Jean Baudrillard e acabei por fazer um trabalho académico sobre o filme. As aventuras de Neo e companhia continuariam em dose dupla com ‘Matrix Reloaded’ e ‘Matrix Revolutions’, ambos de 2003, sem o interesse e o efeito surpresa do primeiro filme. Quase 20 anos depois, a icónica escolha entre comprimido azul e vermelho vai regressar aos cinemas no próximo mês de Dezembro com o quarto capítulo da saga intitulado ‘Matrix Ressurections’.

Álbum: ‘The Matrix: Music from the Motion Picture’ (1999)

O sucesso esmagador de ‘Matrix’ originou não um mas dois álbuns relativos à sua banda sonora. Lançado pouco mais de um mês após a estreia do filme, ‘The Matrix: Original Motion Picture Score’ apresentou o trabalho original desenvolvido para a película pelo maestro Don Davis que compôs, orquestrou e conduziu todas as faixas interpretadas pela Hollywood Studio Symphony. Já o outro álbum de banda sonora saiu sensivelmente ao mesmo tempo que o filme e consistiu em canções de variados artistas, entre consagrados e valores emergentes. ‘The Matrix: Music from the Motion Picture’ apresentou um misto entre géneros musicais tais como big beat, trip hop e variações de metal alternativo como o industrial, rap ou nu metal.

O estilo big beat, muito popular no Reino Unido durante a última década do século passado e os primeiros anos do novo milénio, teve como grandes representantes bandas e artistas como Fatboy Slim, Chemical Brothers e Prodigy. Estes últimos marcam presença no álbum com a faixa ‘Mindfields’, para além dos contributos de outras bandas de big beat como os Propellerheads (através de ‘Spybreak!’, provavelmente a mais icónica de todas as canções associadas a ‘Matrix’ e habitualmente utilizada em homenagens ou paródias ao filme) e os Lunatic Calm (‘Leave You Far Behind’). No que diz respeito ao trip hop, o contributo deste género derivado do acid house é proporcionado por Rob D (‘Clubbed to Death’) e Meat Beat Manifesto (‘Prime Audio Soup’).

Relativamente ao metal alternativo e aos seus subgéneros referidos, o nu metal (estilo popularizado por bandas como os Linkin Park, KoЯn ou Papa Roach) é representado na banda sonora pelos Deftones com a faixa ‘My Own Summer (Shove It)’. O rap metal também marca presença através de um dos seus grupos fundadores do estilo — os Rage Against the Machine, através da faixa ‘Wake Up’, que lança os créditos finais do filme. Por fim, o metal industrial deixa o seu cunho através de alguns dos seus maiores representantes: Ministry (‘Bad Blood’), Rob Zombie (‘Dragula’), Marilyn Mason (‘Rock Is Dead’) e Rammstein (‘Du hast’).

‘The Matrix: Music from the Motion Picture’ foi o primeiro e único álbum de banda sonora que alguma vez adquiri. Apesar do meu gosto por filmes, nunca tinha encontrado uma que me deixasse interessado o suficiente para comprar. No caso da presente colectânea, conhecia algumas bandas que já gostava (Prodigy, Rage Against the Machine), outras tinham êxitos que passavam nas rádios ou televisão e eu apreciava (Deftones, Marilyn Manson) e as restantes não conhecia de todo mas ouvi um pouco dessas faixas na Virgin Megastore que existia nos Restauradores, em Lisboa. Fiquei a adorar Rammstein e reconheci imediatamente do filme a one-hit wonder dos Propellerheads. Foi uma altura em que o rock e o hard rock estavam um pouco fora de “moda” (e não necessariamente “morto” como apregoava Manson na primeira faixa do CD) e eu ia explorando outras sonoridades como a música de componente mais electrónica ou outro tipo de metal que não o mais tradicional ou o trash, pelo que achei uma boa oportunidade para expandir os meus horizontes musicais.

Videojogo: ‘Duke Nukem 3D’ (1996)

Após uma bem-sucedida missão no espaço, Duke Nukem está a bordo da sua nave espacial de volta à Terra, para tirar umas merecidas férias. Assim que se aproxima de Los Angeles, a sua nave é atingida e derrubada por forças hostis desconhecidas. Ao enviar um sinal de socorro do seu veículo, Duke descobre que Los Angeles foi atacada por alienígenas e que o departamento de polícia local foi totalmente transformado em mutantes. Com os seus planos arruinados de vez, Duke ejecta-se a tempo e avança na tentativa de parar a invasão e salvar a Terra, aterrando no topo de um prédio em Hollywood. Inicia-se então a aventura pelas ruas e edifícios vários de Los Angeles e o objetivo do confiante herói é chegar até à nave-mãe alienígena responsável pela invasão, pousada próximo da Falha de Santo André.

A personagem Duke Nukem já tinha sido protagonista de dois jogos de plataformas para o MS-DOS no início da década de 90 mas a sua popularidade no mundo dos jogos de computador só se fez notar à terceira tentativa da 3D Realms, antes conhecida como Apogee Software. Duke passou de um herói mais ou menos convencional e de poucas falas dos jogos anteriores para um durão ao estilo de personagens clássicas do cinema de acção retratadas por Clint Eastwood, Arnold Schwarzenegger ou Bruce Campbell. Aliás, a cultura pop está muito presente em ‘Duke Nukem 3D’, com referências a inúmeros filmes como ‘Aliens — O Recontro Final’ (1986), ‘Nascido para Matar’ (1987) ou ‘Pulp Fiction’ (1994) entre muitos outros, com o herói politicamente incorrecto (na voz icónica de Jon St. John) a disparar piadas à mesma velocidade que projécteis letais.

Se ‘Wolfenstein 3D’ (1992) foi considerado o pioneiro dos FPS (jogos de tiro em primeira pessoa, do inglês first-person shooter) e ‘Doom’ (1993) o título que popularizou este género, é justo dizer que ‘Duke Nukem 3D’ representou a consagração deste estilo da forma mais divertida. Para além da já referida personalidade sarcástica do seu protagonista, o jogo da 3D Realms destacou-se pelo avanço gráfico em relação aos seus antecessores (a par de ‘Quake’, lançado também em 1996) com ambientes destrutíveis, alturas variáveis ou salas-sobre-salas. Era também possível abaixar, saltar, nadar e voar (através do propulsor a jacto), além de se poder fazer mira verticalmente aos adversários ou objectos dos cenários. Estes diferem também bastante dos de ‘Doom’, por exemplo, no sentido em que apresentavam locais baseados na realidade, sendo possível entrar em salas de cinema, clubes de striptease, livrarias, um restaurante japonês com bar de karaoke ou um mesmo campo de futebol americano. Em todos os locais Duke tem algo diferente a dizer ou com que interagir, o que torna o joga mais interessante e menos repetitivo. A acompanhar a aventura do incorrigível Nukem está a composição musical de Robert Prince e Lee Jackson, responsáveis pelo emblemático tema principal ‘Grabbag’ que viria a ganhar uma versão oficial trash metal por parte dos Megadeth.

Depois da Mega Drive e dos seus jogos serem descontinuados por volta de 1997, saltei uma geração de consolas e só voltei a ter uma nova em 2001, depois do lançamento da PlayStation 2. Durante esse período estive mais focado no PC, até por imperativos escolares. Antes de ter internet em casa, ‘Championship Manager’ e todas as suas versões anuais dominaram o tempo que usei o computador para lazer mas chegou uma altura em que me apeteceu jogar algo com mais acção. ‘Duke Nukem 3D’ começou por ser lançado como shareware pela 3D Realms, que disponibilizou grátis em Janeiro de 1996 o primeiro episódio: ‘L.A. Meltdown’. Alguns meses mais tarde foi lançada a versão completa (pelo menos até à altura) com os episódios adicionais ‘Lunar Apocalypse’ e ‘Shrapnel City’, cada um com vários níveis. Foi o meu primo que me arranjou o jogo e fiquei logo agradado desde o início com a relativa liberdade de acção que Duke podia empreender. É claro que para avançar no jogo e passar de nível seria sempre necessário encontrar cartões de acesso a zonas até então fechadas mas o jogo permitia ainda assim andar a vaguear pelo mapa e fazer coisas que não contribuíam em nada para avançar no jogo como partir sanitas ao pontapé, oferecer dinheiro a dançarinas de striptease ou cantar desafinadamente ‘Born to Be Wild’ dos Steppenwolf em versão karaoke. Com tantas distracções humorísticas ou apontamentos satíricos por descobrir sob a voz cómica de durão do protagonista, não admira que nunca tenha chegado ao fim do jogo.