Total 90s — VI

Neste mês: um veículo de promoção de um videojogo sem direcção assistida; uma sinfonia de destruição de uma banda que mostra que, no metal, ser lixo até é uma coisa boa e um regresso a Shadaloo onde todos andam a bater e batem bem.

Filme: ‘Street Fighter — A Batalha Final’ (1994)

Em Shadaloo, cidade-estado localizada no sudeste asiático, uma guerra civil que dura há sete meses é orquestrada pelo sinistro general M. Bison (Raul Julia). O conflito ganha importância mundial após Bison sequestrar 63 delegados das Nações Aliadas, ameaçando executá-los se não receber um resgate de 20 biliões de dólares. Para libertar os reféns é designado o coronel norte-americano William F. Guile (Jean-Claude Van Damme), que conta com a ajuda de Cammy White (Kylie Minogue), uma oficial da Inteligência Britânica, e ainda dois heróis casuais, Ryu Hoshi (Byron Mann) e Ken Masters (Damian Chapa), na tentativa de invadir a fortaleza do ditador. No entanto, o plano de Guile pode estar comprometido devido à intromissão da repórter Chun-Li Zang (Ming-Na Wen), que quer aproveitar o momento conturbado para concretizar uma vingança pessoal.

O sucesso avassalador de ‘Street Fighter II’ consolidou o estatuto da japonesa Capcom como uma das mais importantes produtoras de videojogos a nível mundial e fê-la avançar com a ideia de adaptar o universo dos jogos para o grande ecrã. Dotada de um poderio financeiro por força dos impressionantes números de vendas do referido videojogo tanto para as máquinas arcade como para as consolas, a empresa nipónica financiou a grande parte do orçamento do filme, fixado em 35 milhões de dólares, e deteve controlo criativo sobre todo e qualquer aspecto da produção do mesmo. Steve E. de Souza, argumentista norte-americano de origem portuguesa conhecido pelos seus guiões para ‘Comando’ (1985) e ‘Assalto ao Arranha-Céus’ (1988), foi escolhido para escrever e realizar o filme sob pressão de finalizá-lo a tempo de estrear antes do Natal de 1994. A escolha expressa da Capcom em atribuir o papel de Guile à superestrela belga Jean-Claude Van Damme resultou numa negociação milionária que representou a “fatia de leão” do orçamento, o que levou a que tivessem de ser contratados actores de nome pouco sonante ou mesmo praticamente desconhecidos para os restantes papéis. As excepções foram o reputado actor porto-riquenho Raul Julia encarnando o vilão Bison e a estrela pop australiana Kylie Minogue no papel de Cammy.

Apesar de ‘Street Fighter — A Batalha Final’ ter sido um tremendo êxito de bilheteiras e home video, com a análise das suas receitas a nível mundial a demostrar que a Capcom obteve um retorno na ordem dos 165 milhões, o filme continua a marcar presença nas listas de piores adaptações de videojogos ao cinema e, diga-se, com razão. Argumento medíocre, cenários pobres, actuações fracas e efeitos especiais risíveis são apenas alguns dos problemas apontados ao filme. A ideia original de Steven de Souza (praticamente sem experiência como realizador) era centrar a trama em seis ou sete personagens mas a produtora japonesa pressionou para que o máximo de lutadores da sua propriedade intelectual marcassem presença, o que levou a que alguns deles aparecessem fugazmente, descaracterizados e como mero pretexto para mostrar uns combates. Não deixa de ser irónico o facto de, apesar de ter sido financiado pela Capcom e esta ter escrutinado todas as decisões tomadas, o filme afastar-se tanto do seu material de origem, dando a ideia que até mesmo o videojogo levou-se mais a sério que o próprio filme. Uma palavra para Raul Julia, que sai ileso dos escombros da película assinada por de Souza, com a melhor prestação de todo o elenco. Apesar de fisicamente debilitado por um cancro no estômago, o extraordinário actor (conhecido do grande público como o Gomez de ‘A Família Addams’) aceitou o exigente desafio de interpretar Bison a pedido dos seus filhos, que eram fãs do videojogo. Pouco depois de dar vida ao icónico vilão, Julia viria a perder a sua dois meses antes da estreia do filme.

O fenómeno ‘Street Fighter’ marcou a primeira metade da década de 90 e a minha experiência com os videojogos da série não fugiu à regra, como será explorado mais abaixo. Assim, quando surgiu a oportunidade de ir ver o filme ao cinema com quatro amigos de infância, a expectativa era alta. Em Portugal a estreia deu-se apenas a 30 de Junho de 1995 (mais de seis meses após a estreia nos Estados Unidos) de forma a coincidir com o período de férias grandes dos estudantes do ensino secundário, o público-alvo do filme. Fomos os cinco desde Loures até aos cinemas das Amoreiras, onde encontrámos a sala esgotada e tivemos que telefonar aos nossos pais para perguntar se poderíamos ficar para a sessão seguinte. Os nossos pedidos foram aceites e saímos do cinema felizes, tanto pelo filme como pela experiência de o termos ido ver juntos a Lisboa. Voltando a assistir ‘Street Fighter — A Batalha Final’ quase 26 anos depois desse dia foi quase tão nostálgico quanto penoso. É certo que nem mesmo em adolescente achei o filme propriamente espectacular, com muitas personagens mal caracterizadas face ao videojogo, mas guardava uma ideia de uma hora e meia de entretenimento decente, com Van Damme e os seus característicos pontapés rotativos na memória. A verdade é que até o maior fã da série de videojogos admitirá que o filme deixa muito a desejar e aquela cena final com a pose ridícula de vitória de todos os lutadores resume bem quão desequilibrada é a obra de Steven E. de Souza, que por alguma razão não voltou a ter uma oportunidade atrás da câmara. Game Over.

Música: ‘Symphony of Destruction’ — Megadeth (1992)

Os Megadeth são uma banda norte-americana de heavy metal formada em 1983 e uma das “quatro grandes” do subgénero trash, juntamente com Metallica, Anthrax e Slayer. Após ter sido despedido dos Metallica, o guitarrista principal Dave Mustaine jurou vingança formando uma banda que haveria de ter um som mais acelerado e pesado que estes, para os quais havia composto algumas das canções do primeiro álbum. O baixista David Ellefson foi o primeiro a juntar-se a Mustaine, que viria a tornar-se vocalista também, e após uma série considerável de audições, o segundo guitarrista Chris Poland e o baterista Gar Samuelson fecharam o alinhamento da banda que gravou o álbum de estreia ‘Killing Is My Business… and Business Is Good!’ de 1985. Seguiram-se mais dois trabalhos que ajudaram a popularizar o estilo de trash metal mas foi ao quarto álbum que os Megadeth alcançaram todo o reconhecimento devido. ‘Rust in Peace’, de 1990, originou os singles ‘Holy Wars… The Punishment Due’ e ‘Hangar 18’ e estreou o quarteto “clássico” da banda com Marty Friedman na guitarra e Nick Menza na bateria a acompanharem Mustaine e Ellefson.

Se ‘Rust in Peace’ consolidou o estatuto da banda como um dos grandes do metal, o álbum seguinte — ‘Countdown to Extinction’ (1992) representou o primeiro passo de afirmação no chamado mainstream, um pouco como os rivais Metallica haviam conseguido com o seu disco homónimo (também conhecido como o “álbum negro” pela cor da sua capa) um ano antes. O quinto trabalho de originais dos Megadeth alcançou o segundo lugar da tabela da Billboard, e atingiu o estatuto de dupla platina, apesar do então surgimento do grunge. Alicerçado pelo sucesso dos singles ‘Symphony of Destruction’, ‘Sweating Bullets’ e ‘Skin o’ My Teeth’, todos escritos por Mustaine e cujos videoclipes passavam regularmente na MTV, ‘Countdown to Extinction’ tornou-se o álbum mais bem-sucedido da carreira do quarteto norte-americano, caracterizada por músicas com arranjos complexos e rápidas secções rítmicas.

‘Symphony of Destruction’ aborda a história de um cidadão comum como líder de um regime fantoche, com o país a ser dirigido por um governo fantasma. A famosa lenda do Flautista de Hamelin, conto folclórico celebrizado pelos irmãos Grimm, também é referida na canção, adaptando-se ao significado social e filosófico da mesma. A música abre com um curto segmento vocal do ‘Requiem’ de Mozart para depois dar lugar a um poderoso e cativante riff de guitarra que acompanha a canção até ao final. Por forma a promover o sucesso comercial do single, a Capitol Records produziu um videoclipe para ‘Symphony of Destruction’ sob a realização de Wayne Isham. O teledisco começou por rodar frequentemente na MTV até ser considerado demasiado polémico e sofrer uma posterior edição relativamente à cena que mostrava um assassinato à queima-roupa. Curiosamente, o videoclipe original continuava a passar no popular programa do mesmo canal ‘Beavis and Butt-Head’, onde era uma das canções preferidas da mítica dupla animada. Heheh, cool.

Tendo crescido na década de 80 a ouvir maioritariamente rock e hard rock mas também absorvendo todo o tipo de música que esses anos proporcionaram, o heavy metal não era propriamente uma novidade para mim. Apesar de conhecer e gostar de algumas músicas do género não tinha uma banda preferida do mesmo mas isso mudaria em 1992 quando o meu irmão comprou o álbum ‘The Wild Life’ dos norte-americanos Slaughter numa loja de música e como oferta recebeu uma cassete áudio de promoção que continha várias músicas de diferentes artistas. A primeira canção dessa cassete era precisamente ‘Symphony of Destruction’ e desde logo todos os três irmãos gostámos muito daquele som, que até acabava em fade-out em pleno solo por se tratar de material promocional. Entretanto os Megadeth começaram a passar frequentemente nas rádios e nos programas de música da televisão (lembro-me do meu irmão do meio gravar em VHS os videoclipes de ‘Holy Wars’ e ‘Sweating Bullets) e tornaram-se a minha banda preferida de heavy/trash metal, tendo comprado mais tarde, já em adulto, álbuns como ‘Youthanasia’ (1994), ‘Cryptic Writings’ (1997) ou o experimentalista ‘Risk’ (1999), próprio de uma altura em que os membros de bandas do género de metal andavam a cortar os característicos longos cabelos e a experimentar novas sonoridades.

Videojogo: ‘Street Fighter II’: Special Champion Edition’ (1993)

O misterioso ditador M. Bison, tendo em mente o seu plano de dominação global, cria um torneio mundial de combate para seleccionar os melhores lutadores para trabalhar na sua organização criminosa Shadaloo por meio de lavagem cerebral. Como seus seguidores apresentam-se Sagat, um mestre de muay thai; Vega, um lutador espanhol de artes marciais mistas e Balrog, um pugilista afro-americano. Por todo o mundo respondem ao desafio os seguintes participantes: Ryu, um karateka japonês; Ken, parceiro norte-americano de treino de Ryu; Chun-Li, lutadora chinesa de kung fu; Blanka, um selvagem homem-besta do Brasil; Guile, ex-militar dos Estados Unidos; Zangief, um lutador de sambo da União Soviética; Dhalsim, místico mestre de ioga indiano e Honda, um lutador de sumo do Japão.

Apesar do original ‘Street Fighter’ (1987) ter tido pouco impacto em termos de popularidade, a Capcom decidiu apostar numa sequela do jogo de luta face ao notável sucesso comercial de ‘Final Fight’ (1989), especialmente nas máquinas arcade. Com o produtor Yoshiki Okamoto a liderar uma equipa de cerca de 40 profissionais, o jogo demorou dois anos a ser concluído mas quando a sua primeira versão — ‘Street Fighter II: The World Warrior’ — saiu para os salões de jogos de todo o mundo no primeiro trimestre de 1991, o seu sucesso foi imediato. Tornou-se no jogo mais vendido desde a chamada época dourada das arcades (período situado entre o final da década de 70 e início dos anos 80) e mudou o paradigma então existente da prioridade em obter a pontuação máxima contra a máquina para uma dinâmica competitiva mais focada na jogabilidade no modo de dois jogadores e de como bater o nosso adversário real. Analisando os dados e a evolução da indústria dos videojogos desde o lançamento de ‘Street Fighter II’, é justo dizer que este ocupa um lugar na história como provavelmente o mais importante e influenciador jogo de luta de todos os tempos, por ter popularizado o género na década de 90 e ter levado outros produtores a desenvolverem as suas próprias séries rivais como ‘Mortal Kombat’ ou ‘Virtua Fighter’.

A notoriedade mundial do segundo título da saga levou a Capcom a apostar em diversas renovações do jogo. ‘Street Fighter II’: Special Champion Edition’, lançada logo no ano seguinte para as arcades e em 1993 para a Mega Drive, é talvez a versão mais conhecida de todas que sucederam a ‘The World Warrior’ por apresentar os 12 lutadores clássicos da primeira sequela mas com a possibilidade de poder jogar com qualquer um dos “quatro grandes mestres” (Balrog, Vega, Sagat e Bison) que anteriormente eram apenas controlados pela máquina. De resto, para além de pequenos retoques nos gráficos e na música, a fórmula base manteve-se, com o jogador a enfrentar o seu adversário em combates um-contra-um num ambiente fechado, em séries de melhor de três. O objectivo de cada ronda é esvaziar a energia do oponente dentro do tempo limite e há ainda a existência de rondas bónus a cada três combates.

No início da década de 90 passei algumas férias de verão numa casa alugada perto de Santa Cruz. Para além das frequentes idas à praia, eu e o meu irmão do meio descobrimos um café com uma sala de jogos que tinha uma máquina de arcade de ‘Street Fighter II’. Ali gastei algumas moedas, enquanto ia lendo em revistas de videojogos (nomeadamente a Mega Force) que uma versão do jogo chegaria à Mega Drive no último semestre de 1993. Para quem já tinha testado o jogo as críticas eram unânimes: ‘Street Fighter II’: Special Champion Edition’ seria o melhor e maior (cartucho com 24 megas) a ser lançado para a principal consola da Sega e uma impecável adaptação do tão popular título que encantava os adolescentes nos salões de jogos. Também eu fiquei encantado com a notícia e avaliação da revista e decidi começar a poupar nas moedas. Quando o jogo finalmente saiu, a 29 de Outubro, pedi ao meu pai para o comprar mas o problema é que custava quase 18 contos na moeda antiga (um recorde na altura, batido no ano seguinte por ‘Virtua Racing’). Tive o meu desejo satisfeito, como prenda antecipada de Natal e aniversário, e à custa de não voltar a ter jogos novos por quase um ano e de deixar de gastar moedas em máquina arcade. Diria que valeu a pena, especializei-me no jogo ao ponto de chegar ao fim, sem batotas, com qualquer um dos 12 lutadores e de ter até entrado num torneio da Sega realizado no Pavilhão Paz e Amizade. Um nome irónico para um espaço que recebeu uma sessão de frenética pancadaria virtual e onde percebi que afinal não jogava assim tão bem como pensava.