Neste mês: sete pecados capitais e uma caixinha de surpresas; um olhar diferente para a Califórnia entre o cruciante e o Frusciante e um pontapé na crise dos videojogos de futebol que começou uma guerra que dura até hoje.
Filme: ‘Seven — 7 Pecados Mortais’ (1995)
Os detectives William Somerset (Morgan Freeman) e David Mills (Brad Pitt) são encarregados de investigar um perigoso e intrigante caso. Um assassino em série está a fazer vítimas baseado em indivíduos que ele acredita representarem os sete pecados mortais: gula, avareza, luxúria, vaidade, preguiça, ira e inveja. Estes são comportamentos que não podem ser dissociados do humano e que são considerados pecados pelo catolicismo desde a Idade Média. William é experiente e está a uma semana de se reformar, enquanto David é um novato recentemente transferido e um tanto temperamental e impetuoso. À medida que vão avançando na investigação, ambos passam a fazer parte do plano do psicopata.
Em 1992, o realizador norte-americano David Fincher estreava-se em Hollywood, logo ao comando do aguardado terceiro filme da saga ‘Alien’. O que parecia ser um sonho para o jovem cineasta, com carreira elogiada na área da publicidade e dos videoclipes musicais, tornou-se num pesadelo com frequentes intromissões de executivos da 20th Century Fox e vários guiões a serem reescritos em plena rodagem do filme a comprometerem a visão de Fincher. O desgosto pela versão final de ‘Alien 3’ foi tão grande que o cineasta pediu mesmo que retirassem o seu nome dos créditos e regressou à realização de videoclipes. Três anos mais tarde e após ter ficado intrigado por um guião original escrito por Andrew Kevin Walker, Fincher aceitou o desafio de realizar ‘Seven — 7 Pecados Mortais’ com o pressuposto de que a New Line Cinema não interferiria no tom negro e macabro do argumento, incluindo o seu chocante final. O estúdio acedeu, com a condição de poder rodar um final alternativo se os resultados dos screenings (exibições prévias de um filme para, avaliando as reacções do público, testar se serão necessárias alterações antes do lançamento oficial) não se revelassem favoráveis. O filme e o seu duro final foram bem recebidos e o sucesso traduziu-se da mesma forma nas bilheteiras, tornando-se um dos mais rentáveis filmes de 1995.
‘Se7en’ não arrecadou nenhuma estatueta dourada da Academia mas tem a curiosidade de contar com quatro actores que viriam a ser galardoados futuramente: Morgan Freeman, Brad Pitt, Gwyneth Paltrow e Kevin Spacey. A mestria dos mesmos foi fundamental para acompanhar o espectador na viagem psicológica de desconforto que o filme transmite, auxiliada por um trabalho de fotografia notável do franco-iraniano Darius Khondjie e de uma montagem merecedora de elogios por parte do australiano Richard Francis-Bruce. O reconhecimento maior vai, no entanto, para David Fincher por ter juntado todas as peças de forma brilhante, respeitando o argumento original e, mesmo tempo, levando avante a sua visão sombria de uma sociedade irremediavelmente podre, curiosamente nunca revelando ao longo do filme qual a cidade onde se passa a trama. Fincher arrancaria para uma carreira de sucesso em Hollywood, com ‘Clube de Combate’ (1999), ‘O Estranho Caso de Benjamin Button’ (2008) ou ‘A Rede Social’ (2010) — muitas vezes desvalorizado como “o filme do Facebook”, a revelarem-se bons exemplos do seu talento como realizador.
Tendo tido o primeiro contacto com thrillers revelando assassinos em série através de ‘O Silêncio dos Inocentes’ (1991), de Jonathan Demme, o género voltou a interessar-me na adolescência quando vi o trailer de ‘Seven — 7 Pecados Mortais’. Eu que já espreitava filmes de terror desde criança, achei a pelicula de Fincher bem mais pesada e perturbadora. Apesar do psicopata “John Doe” (pseudónimo utilizado quando o nome verdadeiro de um indivíduo é desconhecido) não ser visto a matar ninguém no filme, este é provavelmente um dos mais horríficos e sádicos assassinos da história do cinema. O poder de sugestão também é habilmente explorado por Fincher na tensa sequência final, provando que é possível horrorizar o espectador sem a necessidade de o fazer de forma gráfica. Tenho um apreço especial para os filmes cujo final abre lugar a uma discussão sobre o significado do mesmo e aqui a questão prende-se com um pormenor que me escapou da primeira vez que vi este thriller. A revelação de “John Doe” sobre Tracy compromete a, até então, intocável integridade de Somerset ou não passa de uma pura provocação do psicopata? Nunca saberemos com certeza e ainda bem.
Álbum: ‘Californication’ — Red Hot Chili Peppers (1999)
Formados em Los Angeles no ano de 1983, os Red Hot Chili Peppers (RHCP) são actualmente Anthony Kiedis (vocalista), Flea (baixista), Chad Smith (baterista) e John Frusciante (guitarrista). Este é, aliás, o quarteto “clássico” responsável pelos maiores sucessos da banda ao longo da sua carreira, que tem sido marcada pelo “entra-e-sai” de Frusciante. Kiedis e Flea fundaram os RHCP juntamente com Hillel Slovak e Jack Irons mas os dois últimos acabariam por não gravar o homónimo (e quase anónimo) primeiro álbum de 1984. Os dois discos seguintes também passaram despercebidos e só quando Smith e Frusciante se juntaram à banda para a gravação de ‘Mother’s Milk’ (1989) é que o conjunto californiano começa a ser falado, especialmente pela versão da canção ‘Higher Ground’ de Stevie Wonder. A elevação a estrelas mundiais do rock alternativo chegaria dois anos mais tarde com ‘Blood Sugar Sex Magik’, pela mão do conceituado produtor Rick Rubin. O álbum deu origem a cinco singles, incluindo os agora clássicos ‘Give It Away’ e ‘Under the Bridge’.
Quando tudo parecia correr bem aos RHCP no pico da sua popularidade, John Frusciante surpreendeu os fãs ao abandonar a banda a meio da digressão de 1992. Alegadamente por não conseguir lidar com a súbita fama, a saída do virtuoso guitarrista deixou um vazio no grupo e chegou mesmo a pensar-se que seria o fim deste. Em 1995, a banda volta aos discos e lança ‘One Hot Minute’ (1995), com Dave Navarro (Ex-Jane’s Addiction) na guitarra, mas a reacção do público e da crítica especializada foi de pouco entusiasmo. Navarro seria despedido por “diferenças criativas” menos de três anos depois e a banda voltaria a considerar a dissolução da mesma. É então que, após um encontro entre Flea e Frusciante, o anterior guitarrista acede ao pedido para regressar e o quarteto de sucesso volta a reunir-se novamente. Após mais de um ano de trabalho de estúdio e mais uma vez com a produção a cargo de Rubin, ‘Californication’ é lançado e torna-se o álbum de maior sucesso dos RHCP a nível mundial, com mais de 15 milhões de cópias vendidas. Dos seis singles retirados do sétimo trabalho de originais da banda, ‘Otherside’, ‘Around the World’, Californication’ e ‘Scar Tissue’ (galardoado com um Grammy por Melhor Canção de Rock) foram os que mais tiveram destaque, passando frequentemente nas rádios e nos canais televisivos de música.
Se ‘Blood Sugar Sex Magik’ havia significado a chegada ao estrelato, ‘Californication’ representou a consagração dos RHCP como umas das mais bem-sucedidas bandas de rock alternativo da história da música. O regresso de John Frusciante significou a abordagem a um rock mais melódico, em oposição ao funk-punk que marcou os primeiros álbuns e em contraste com o som mais psicodélico de ‘One Hot Minute’. A mesma linha marcaria os álbuns seguintes — ‘By the Way’ (2002) e ‘Stadium Arcadium’ (2006), igualmente bem recebidos e com vários singles em destaque. Frusciante voltaria a sair da banda em 2009 e, curiosamente ou não, o sucesso dos álbuns ‘I’m with You’ (2011) e ‘The Getaway’ (2016) ficou muito aquém dos anteriores. Como não há duas sem três, Frusciante regressou novamente aos RHCP em 2019 e esperam-se novo álbum e concertos, incluindo no nosso país, em 2022.
Como qualquer adolescente que viveu na década de 90, também fiquei a conhecer os Red Hot Chili Peppers pelos êxitos ‘Under the Bridge’ e ‘Give It Away’ que, embora bem diferentes em estilo, deixaram uma marca e deram a conhecer a banda. Contudo, se há coisa que a história da música contemporânea nos ensinou é que o mais difícil para um grupo ou artista é manter-se no topo ou, pelo menos, relevante após atingir um êxito. O termo one-hit wonder surgiu precisamente dessa dificuldade, catalogou muitos artistas e continuará a fazê-lo ao longo dos tempos. Os RHCP até poderiam estar a salvo dessa designação mas chegou a temer-se que estagnariam cedo. Do álbum seguinte, só me recordo de ouvir ‘Aeroplane’ passar nas rádios e não seria propriamente o tipo de música que me faria comprar um disco deles. Felizmente regressaram em força com ‘Californication’ e lembro-me de levar o meu CD para as festas da “semana do caloiro” da faculdade onde foi dos mais rodados, a par da tradicional presença de Quim Barreiros, um ícone dos convívios universitários. A combinação improvável entre “malaguetas muito picantes” e um artista popular conhecido pelas suas letras da mesma natureza.
Videojogo: ‘FIFA International Soccer’ (1993)
Findadas este mês as duas maiores competições de selecções jogadas nos continentes europeu e americano e a pouco mais de um ano do próximo Mundial de Futebol organizado pela FIFA, a relevância do “desporto-rei” por todo o globo continua forte como nunca. A indústria dos videojogos cedo percebeu esse apelo e entre o final da década de 70 e início dos anos 80 surgiram jogos como ‘Electronic Table Soccer’ (que na verdade era mais uma espécie de jogo de matraquilhos que outra coisa) e ‘Pelé’s Soccer’ (um videojogo da Atari que hoje pode-se dizer que é do “tempo da bola quadrada” porque, literalmente, o suposto esférico tinha o aspecto de um quadrado). Ao longo da década de 80 foram lançadas dezenas de títulos, especialmente para o ZX Spectrum, mas a quantidade poucas vezes foi sinónimo de qualidade. Chegados à primeira metade dos anos 90, dominava a vista aérea do terreno de jogo por parte das séries ‘Kick Off’ e ‘Sensible Soccer’ mas um novo concorrente viria o mudar o futuro dos videojogos de futebol.
A produtora norte-americana Electronic Arts começou por se lançar nos videojogos de desporto em 1988 com ‘John Madden Football’, um título de futebol americano, seguindo-se jogos de golf e hóquei no gelo. A popularidade mundial do futebol, conhecido nos Estados Unidos como soccer, levou a divisão EA Sports do Canadá a desenvolver um título do género que pudesse diferenciar-se dos existentes no mercado. A grande inovação dar-se-ia ao nível da perspectiva isométrica do campo, um ponto de vista bem distinto dos aéreos ou laterais habitualmente presentes nos videojogos de futebol da era dos 16 bits. Elogiadas foram também as animações dos jogadores em campo, a possibilidade de ver repetições e os efeitos sonoros, nomeadamente os cânticos vindo das bancadas. Apesar do acordo firmado com a Fédération Internationale de Football Association, cuja sigla identifica a série de videojogos até hoje, ‘FIFA International Soccer’ contou com escassos sinais dessa licença pois todos os jogadores têm nomes fictícios, as selecções não apresentam nenhum logotipo das respectivas federações e o único estádio é genérico.
Considerado um dos primeiros simuladores completos de futebol, o jogo apresenta 48 equipas jogáveis, todas selecções (incluindo Portugal, o que na altura não era propriamente comum encontrar em videojogos do tipo) e com a escolha de quatro modos de jogo: exibição, torneio, playoffs e liga. Não há nível de dificuldade para seleccionar e a mesma é ditada pelo valor da equipa que o jogador enfrenta. Lançado em Dezembro de 1993 de forma a antecipar-se a ‘World Cup USA ‘94’, título da U.S. Gold que detinha a licença oficial do campeonato do mundo de futebol desse ano, o primeiro jogo da saga FIFA arrasou a concorrência e surpreendeu mesmo as expectativas mais optimistas da própria Electronic Arts. Tornou-se, por exemplo, o jogo mais vendido do ano no Reino Unido apesar de só ter chegado às lojas no último mês desse ano. O sucesso do jogo gerou a sequela ‘FIFA Soccer 95’, que já permitia jogar com clubes de alguns países, e ‘FIFA Soccer 96’, que representou um passo em frente após o acordo com a FIFPro permitir o uso dos nomes reais dos jogadores. É por volta desta altura que surge por parte da Konami a saga ‘International Superstar Soccer’, precursora da série ‘Pro Evolution Soccer’ (PES, futuramente ‘eFootball’) com quem ‘FIFA’ se bate até aos dias de hoje, na maior rivalidade da história dos videojogos de futebol e até de qualquer outro desporto.
Desde os tempos do ZX Spectrum que era frequente juntar-me nas férias grandes com primos, amigos de infância ou colegas de escola para passar umas tardes na “jogatana”. Com a chegada da Mega Drive, isso tornou-se ainda mais frequente pois certos jogos claramente o propiciavam. Apesar de Portugal ter ficado de fora do Campeonato do Mundo de Futebol de 1994, esse foi o primeiro torneio de selecções que segui com atenção e reparei que mais amigos o faziam, quer por comentarmos resultados da véspera, tentarmos imitar golos nas nossas “peladinhas” ou mesmo pela típica troca de cromos e calendários oficiais da competição. Todo este interesse pelo futebol traduziu-se também, naturalmente, pelos videojogos do género. Quando surgiu ‘FIFA International Soccer’ ficámos todos entusiasmados pela jogabilidade em si mas também pela possibilidade de até 8 jogadores participarem no mesmo modo de jogo. Isto significavam longas tardes a esperar pela nossa vez enquanto os restantes jogavam entre eles ou contra o computador, concordando eu não utilizar a célebre “batota” para marcar golos fáceis que era colocar um jogador à frente do guarda-redes adversário na reposição de bola. Não tive a sequela ‘FIFA Soccer 95’ mas ficou na memória entre o grupo de amigos de infância uma liga de selecções jogada na sala do condomínio do prédio onde moravam dois deles. Ficou adiada a sua conclusão ad aeternum mas, em jeito de provocação, nunca perco a oportunidade para relembrar quem a liderava por altura da última gravação.