Total 90s — XI

Neste mês: um jornalista “espertalhão” a quem foi feita uma oferta que não pôde recusar; uma banda progressiva que lançou os dados à procura de melhor sorte e um jogo de computador que é também uma lição de história antiga.

Filme: ‘Tudo Bons Rapazes’ — GoodFellas (1990)

Henry Hill (Ray Liotta) é um italo-irlandês de Brooklyn cuja ambição desde adolescente é ser um gangster e que ganha a confiança e amizade de “Jimmy” Conway (Robert De Niro) e Tommy DeVito (Joe Pesci), mafiosos em ascensão. Tratado como protegido por mais de vinte anos, Henry participa em golpes cada vez maiores e acaba por se casar com Karen Hill (Loraine Bracco), a sua jovem amante judia que vê toda a sua vida social misturar-se com o crime organizado. Impossibilitado de ser totalmente adoptado pela “família”, o jovem ambicioso conquista prestígio e envolve-se com o tráfico de drogas, pratica grandes roubos e ganha muito dinheiro, mas os agentes federais estão no seu encalce e o seu destino pode mudar a qualquer momento.

Após ler e ficar impressionado com a obra ‘Wiseguy’ (1985) do jornalista e escritor norte-americano Nicholas Pileggi, Martin Scorsese ligou ao autor sobre a possibilidade de adaptar o livro ao grande ecrã. A resposta foi entusiasticamente positiva e ambos juntaram-se para escrever o argumento do filme. A luz verde para o financiamento da longa-metragem surgiu logo após o nome de Robert De Niro ter sido confirmado no elenco. Para a personagem de Henry Hill, na qual livro e filme se centram para contar a sua ascensão e queda no mundo da máfia de 1955 a 1980, foi escolhido o então pouco conhecido Ray Liotta, cuja prestação no filme ‘Selvagem e Perigosa’ (1986) havia cativado Scorsese. Joe Pesci, cuja parceria com De Niro no grande ecrã já incluía ‘Touro Enraivecido’ (1980) e ‘Era Uma Vez na América’ (1984), ganhou o papel de Tommy DeVito e acabou por arrebatar o Óscar de Melhor Actor Secundário pela sua intensa prestação.

Uma das imagens de marca de Martin Scorsese é a liberdade de improvisação de diálogo que dá aos seus actores e isso mesmo sucedeu em ‘Tudo Bons Rapazes’, com o cineasta nova-iorquino a tirar notas de algumas falas improvisadas durante os ensaios para depois incluí-las na revisão do argumento e consequentes filmagens. Foi deste modo que surgiu a famosa cena em que Joe Pesci questiona Ray Liotta: “Engraçado como?”. A sequência inteira baseou-se na experiência de vida real de Pesci como um jovem empregado de um restaurante, em que certa vez disse a um cliente, criminoso, que ele era engraçado. Scorsese encorajou Pesci e Liotta a colocar essa história na cena sem dizer aos outros actores para que a câmara pudesse capturar a tensa reacção real. Outras características habituais do cinema do realizador que se fazem notar são a extensiva narração por parte do protagonista, os longos planos a seguirem uma ou mais personagens ou o uso de freeze frames, em que imagens são momentaneamente congeladas no ecrã de modo a enfatizar um determinado acontecimento da referida narração.

O título de melhor filme de sempre sobre a máfia ou gangsters no geral, detido por ‘O Padrinho’ (1972) ou ‘O Padrinho: Parte II’ (1974) desde a sua estreia, nos cinemas encontraria finalmente o seu maior pretendente no início da década de 90 através da mais visceral das obras de Martin Scorsese. São inevitáveis as comparações atendendo à temática similar de ambos os filmes mas as suas diferenças começam logo pelo material de origem e de como ambas as obras literárias foram adaptadas. Se a saga ‘O Padrinho’ provém do livro homónimo de Mario Puzzo sobre uma família mafiosa fictícia e estendeu-se por três filmes realizados por Francis Ford Coppola (com o terceiro a ficar muito aquém da excelência dos dois primeiros), ‘Tudo Bons Rapazes’ é uma história real da vida de um gangster (que até colaborou com os argumentistas e actores) condensada em menos de duas horas e meia de filme. Pessoalmente, tenho dificuldade em eleger o meu favorito, talvez ainda mais porque vi o filme de Scorsese antes da saga de Copolla e fiquei impressionado como esses 146 minutos passaram a voar, muito pelo estilo acelerado como a conceituada técnica de montagem Thelma Schoonmaker (colaboradora inseparável do realizador de ascendência italiana) editou o filme, com muitas cenas presentes mas sem as mesmas se arrastarem demasiado.

Álbum: ‘Roll the Bones’ — Rush (1991)

Os Rush foram uma banda canadiana de rock formada em 1968 e que foi composta por Alex Lifeson (guitarra), Geddy Lee (voz e baixo) e Neil Peart (bateria) durante praticamente toda a carreira, com a excepção do homónimo álbum de estreia datado de 1974. O trio de Toronto tornou-se conhecido pelas habilidades instrumentais dos seus membros, composições complexas e letras de natureza diversa que abordam maioritariamente a ficção científica, fantasia e filosofia. Musicalmente, o estilo evoluiu ao longo dos anos começando por um rock mais inspirado nos blues patente nos seus primeiros álbuns, tendo depois passado por fases em que predominaram as influências do hard rock, rock progressivo e uso de sintetizadores.

Após se terem consolidado com uma das bandas de referência do prog rock, especialmente depois do álbum conceptual ‘2112’ (1976), os Rush atingiriam o seu maior sucesso comercial com ‘Moving Pictures’, de 1981. Sem deixar de ser, no seu âmago, um trabalho de rock progressivo, o álbum permitiu à banda a entrada nos exigentes mercados norte-americano e britânico, onde atingiu o pódio nas tabelas de vendas. Os anos 80 seriam a década mais prolífica dos canadianos em termos de lançamentos de novos trabalhos de originais, com outros cinco álbuns a seguirem-se mas sem grandes êxitos a chegarem às rádios ou aos programas de videoclipes. É já nos anos 90 que a banda lança os dados e sai ‘Roll the Bones’, um trabalho em que o som da guitarra de Alex Lifeson volta a ser mais predominante ao invés do uso intensivo de sintetizadores manifesto nos álbuns anteriores. Foi também o regresso ao sucesso comercial dos Rush, impulsionado pela canção que dá nome ao álbum.

‘Roll the Bones’ originou apenas dois singles oficiais muito pelo facto de a banda ter recusado gravar videoclipes para promoção. A escolha da Anthem Records recaiu em ‘Roll the Bones’ e ‘Ghost of a Chance’, que passaram frequentemente nas rádios, mas qualquer uma das dez canções que compõem o álbum podia ter sido escolhida, incluindo a faixa instrumental ‘Where’s My Thing’, nomeada para um Grammy. Produzido pelo inglês Rupert Hine em conjunto com os Rush, o 14º álbum de estúdio atingiu o disco de platina e abriu a banda a uma nova geração. O trio canadiano lançaria depois ‘Counterparts’ (1993) e ‘Test for Echo’ (1996) até que uma série de tragédias na vida pessoal do baterista Neil Peart provocou um hiato na carreira dos músicos. A banda regressaria ao activo em 2001 e produziria mais três álbuns de originais até em 2015 anunciar o fim das digressões e em 2018 o término da longa carreira. Peart faleceria em 2020, inviabilizando qualquer eventual regresso dos Rush aos palcos ou discos.

Por ser uma banda que percorreu a maior parte da sua carreira como uma referência do rock progressivo, um nicho em oposição ao mais comercial rock convencional, os Rush passaram-me ao lado durante a infância. A primeira vez que ouvi uma das suas canções terá sido mesmo quando ‘Roll the Bones’ começou a passar nas rádios portuguesas no início de 1992. Pouco tempo depois, o meu irmão mais velho comprou o álbum homónimo e fiquei fã. Mesmo sendo já na época do CD (e, desta forma, mais fácil de passar faixas por telecomando) sempre ouvi o álbum integralmente, começando pela empolgante ‘Dreamline’, seguindo-se a belíssima ‘Bravado’ e por aí em diante. ‘Roll the Bones’ (expressão anglo-saxónica que significa “lançar os dados”) terá sido a canção que mais terei ouvido de todo o álbum devido a tê-la incluído também numa colectânea de várias que passavam nas rádios da altura. Acabaria por aprofundar posteriormente o meu conhecimento dos Rush e da sua música através dos videojogos das séries ‘Guitar Hero’ e ‘Rock Band’, que continham vários dos seus êxitos dos anos 70 e início dos anos 80 demonstrativos da excelência instrumental dos músicos canadianos.

Videojogo: ‘Age of Empires’ (1997)

Em 1997, o género de estratégia em tempo real estava longe de ser uma novidade no mundo dos videojogos mas a maioria dos títulos existentes exploravam ambientes de ficção científica ou de fantasia. A escolha da produtora norte-americana Ensemble Studios em centrar a acção em cenários históricos, mais plausíveis e acessíveis a jogadores casuais, permitiu a ‘Age of Empires’ (AoE) sobressair dentro do género e foi fundamental para a gigante Microsoft interessar-se em distribuir o jogo. O mesmo usa o Genie Engine, um motor de jogo em 2D assentando em sprites, e consiste em permitir ao jogador liderar uma civilização ancestral progredindo através de quatro eras (Idade da Pedra, Idade da Ferramenta, Idade do Bronze e Idade do Ferro) controlando civis e unidades militares até alcançar a supremacia em relação a outros povos.

Estão disponíveis para escolha 12 civilizações distintas, divididas em tipos de arquitectura: ocidental (Gregos, Minoanos e Fenícios), árabe (Sumérios, Assírios e Egípcios), mesopotâmica (Babilónios, Hititas e Persas) e asiática (períodos ou dinastias Choson, Shang e Yamato). Relativamente a modos de jogo, é possível escolher cenários específicos pré-determinados, outros completamente aleatórios, a opção de batalha mortal contra outras civilizações até estas estarem extintas ou o modo multijogador, com limite de oito jogadores e em que dois ou mais podem dividir o controlo de uma civilização durante o jogo, jogando de modo cooperativo. Para além destas opções, o modo campanha (em que o jogador deve completar objectivos específicos ao longo da história) permite controlar quatro das civilizações presentes no jogo, respectivamente: “A Ascensão do Egipto”; “A Glória da Grécia”; “Vozes da Babilónia” e “Yamato, o Império do Sol Nascente”.

Para poder progredir em ‘Age of Empires’, o jogador deve recolher os quatro recursos naturais disponíveis (comida, madeira, ouro e prata) e edificar vários tipos de construções. As condições de vitória variam conforme o modo de jogo e vão desde a aniquilação total dos adversários à conquista e defesa de determinado artefacto, ruína ou monumento, para além de uma possível vitória por pontos ou tempo. O sucesso de AoE, tanto a nível de elogios da crítica especializada como olhando para os quase 3 milhões de cópias vendidas, deu origem a uma série de jogos que contabiliza já nove títulos lançados, incluindo o aclamado ‘Age of Mythology’ (2002) que se afastaria mais do contexto de eventos históricos para privilegiar um cenário centrado em mitos e lendas ancestrais de diversas civilizações.

Interessei-me por ‘Age of Empires’ após ter visto o meu irmão mais velho jogar. Achei interessante a mecânica do jogo contra a inteligência artificial e como esta reagia de forma diferente conforme a civilização controlada. Em certos episódios com 4 povos presentes ao mesmo tempo, alguns apenas se limitavam a recolher recursos na sua zona e a evoluir pacificamente (sendo até possível estabelecer uma aliança com os mesmos) enquanto outros mais hostis partiam quase de início para a agressão. Comecei a jogar também e completei mais de uma campanha pois, apesar de a mecânica ser similar em todas as quatro, cada civilização tem objectivos distintos baseados na sua história e até a música é diferente em cada uma delas, tendo o compositor Stephen Rippy utilizado sons de instrumentos próprios dos respectivos períodos. AoE foi considerado na altura do seu lançamento um cruzamento entre ‘Civilization’ e ‘Warcraft’ e acabou ele próprio por influenciar toda uma série de jogos do género, jogáveis também em smartphone, como os populares ‘Travian’ ou ‘Clash of Clans’.