Total 90s — XIV

Neste mês: um filme memorável cuja implantação não valia a pena copiar; um grupo de doutores de especialidade musical e um videojogo de “kombate” em que o golpe final é fatal como o destino.

Filme: ‘Desafio Total’ — Total Recall (1990)

No ano de 2084, o operário Douglas Quaid (Arnold Schwarzenegger) recorre a um implante de memória para poder simular uma viagem a Marte, já que a sua esposa não concordava com uma viagem real. Contudo, o procedimento corre mal e Quaid começa a lembrar-se de quem realmente era e de factos, então, desconhecidos. Perseguido por visões daquele planeta, resolve ir até lá para conseguir respostas sobre o seu passado e é perseguido por Lori (Sharon Stone), que ele pensava ser sua mulher. Ao chegar a Marte, une-se a um grupo de rebeldes que lutam contra uma corporação que quer dominar o planeta e, consequentemente, dominar o mercado de minério na Terra. Esses rebeldes conhecem o passado de Quaid e ajudam-no a conhecer o verdadeiro propósito das visões e sonhos que o mesmo tem para, desta forma, tornar-se a única esperança de vitória dos habitantes locais.

Em 1974, o argumentista norte-americano Ronald Shusett comprou os direitos do conto ‘We Can Remember It for You Wholesale’ ao autor, o compatriota Philip K. Dick, escritor renomado de ficção científica cujas obras originariam vários clássicos do género no grande ecrã. Dan O’Bannon juntou-se a Shusett e escreveram em conjunto a primeira versão do argumento ainda antes de colaborarem no guião de ‘Alien — O 8.º Passageiro’ (1979). O projecto foi passando de estúdio para estúdio e por mãos de possíveis interessados como o produtor Dino De Laurentiis e o realizador David Cronenberg até que chegou a Arnold Schwarzenegger e este convenceu a Carolco Pictures a adquirir os direitos do filme, negociando um salário para si com repartição futuro dos lucros. Schwarzenegger obteve poder de veto sobre o produtor, realizador, argumento, co-estrelas e promoção, tendo recrutado pessoalmente o neerlandês Paul Verhoeven para dirigir o filme, após ficar impressionado com ‘RoboCop’ (1987). Nessa época, o guião já havia passado por 42 rascunhos, mas ainda faltava redefinir o terceiro acto. Gary Goldman foi então trazido por Schwarzenegger para trabalhar com Shusett para desenvolver o rascunho final do argumento.

‘Desafio Total’ ficou na história por, à altura, ter sido um dos filmes mais caros de sempre, muito pelo avultado investimento em efeitos especiais. A californiana Dream Quest Images foi a empresa escolhida para pôr em prática a visão futurista de Dick e mais de 100 efeitos visuais podem ser vistos por todo o filme. O trabalho foi galardoado com um Óscar da Academia, que também reconheceu o som e efeitos sonoros com uma nomeação. A obra de Verhoeven foi um sucesso de bilheteira e originou um videojogo do mesmo nome, a série de televisão ‘Total Recall 2070’ (1999) e a ideia para uma sequela que esteve em cima da mesa durante vários anos, acabando por ser repensada e transformada em ‘Relatório Minoritário’ (2002), de Steven Spielberg, igualmente baseado num conto de Philip K. Dick. Em 2012 surgiu um remake com Colin Farrell no papel principal que não trouxe nada de novo e que ficou muito aquém do original.

Durante os anos 80 e a primeira metade da década seguinte, a esmagadora maioria dos filmes com Arnold Schwarzenegger como protagonista que passavam na televisão portuguesa eram motivo de gravação em cassete VHS. Assim se passou com ‘Desafio Total’, que gostei da primeira vez que o vi principalmente pelas sequências de acção e efeitos especiais. Provavelmente não terei compreendido na altura tudo sobre a história e o final aberto mas visionamentos adicionais ao longo dos anos têm aumentado o meu apreço pelo filme, nomeadamente pela temática das memórias. Sempre me fascinou o funcionamento destas e como, por vezes, pensamos ter a certeza de algo que recordamos quando na verdade alguns detalhes estão errados, como se fossem memórias “implantadas”.

Música: ‘Two Princes’ — Spin Doctors (1991)

Os Spin Doctors são uma banda de rock norte-americana fundada em 1988 na cidade de Nova Iorque. Chris Barron (voz), Eric Schenkman (guitarra), Aaron Comess (bateria) e Mark White (baixo) representam o quarteto clássico da banda desde a gravação do disco de estreia ‘Pocket Full of Kryptonite’, lançado em Agosto de 1991. O álbum teve uma recepção algo modesta inicialmente em termos de cópias vendidas mas começou a disparar quando o primeiro single ‘Little Miss Can’t Be Wrong’ foi lançado no ano seguinte. Seguiu-se ‘Two Princes’ no início de 1993 e a alta rotação da canção nas rádios e nos canais televisivos de música reflectiu-se nos números de vendas do álbum, que alcançou nos Estados Unidos a certificação de platina por cinco vezes e manteve-se na tabela da Billboard durante 115 semanas.

‘Two Princes’ tornou-se a canção mais popular dos Spin Doctors, com uma contagiante secção rítmica acompanhada pela guitarra de Schenkman com toques de funk e a voz de Barron a encaixar-se da melhor forma. Alcançou a nomeação para Melhor Música de Rock nos prémios Grammy de 1994 e permanece como uma das mais reconhecidas músicas de rock alternativo da primeira metade da sua década. ‘Pocket Full of Kryptonite’, gravado no célebre estúdio Power Station de Nova Iorque, deu origem ainda a mais dois singles: ‘What Time Is It?’ e ‘Jimmy Olsen’s Blues’, uma canção humorística do ponto de vista de Jimmy Olsen, personagem da banda desenhada do Super-Homem que nesta história cantada tenta arrebatar Lois Lane ao super-herói alegando ter um “bolso cheio de kryptonite”, precisamente expressão que dá nome ao álbum.

A carreira dos Spin Doctors continuou em alta, tendo sido convidados a gravar versões dos clássicos ‘Have You Ever Seen the Rain?’ dos Creedence Clearwater Revival para a banda sonora do filme ‘Filadélfia’ (1993) e de ‘That’s the Way (I Like It)’ originalmente dos KC and the Sunshine Band para o alinhamento musical do filme ‘Space Jam’ (1996). Pelo meio chegou o segundo álbum de originais — ‘Turn It Upside Down’ (1994) que, não tendo sido tão bem sucedido como o primeiro, ainda alcançou números de venda de platina. Seguiram-se mais dois álbuns e na véspera do lançamento de ‘Here Comes the Bride’ (1999), Chris Barron sofreu uma rara e grave paralisia das suas cordas vocais que os médicos avaliaram com uma hipótese de 50–50 de voltar a falar novamente, quanto mais cantar. Felizmente, Barron recuperou a sua voz praticamente um ano depois e os Spin Doctors voltariam ao activo em 2001 mas o hiato forçado provou ser decisivo para a perda de popularidade da banda nova-iorquina.

Comecei a gravar em cassete as minhas próprias compilações de músicas que passavam na rádio quando era criança e esse hábito continuou nos primeiros anos de adolescência. ‘Two Princes’ foi a primeira música escolhida para a minha mixtape do 7º ano e até me lembro de levar a cassete para um almoço de colegas de escola numa pizzaria local onde a colocaram a tocar. Continuei a acompanhar a carreira dos Spin Doctors e foi através deles e da referida versão de ‘Have You Ever Seen the Rain?’ que mais tarde tive curiosidade em descobrir a música original dos Creedence, hoje uma das minhas bandas preferidas de décadas anteriores ao meu nascimento.

Videojogo: ‘Mortal Kombat II’ (1993)

Após o seu fracasso em derrotar Liu Kang no torneio anterior de Mortal Kombat, o malvado Shang Tsung implora a seu mestre Shao Kahn, governante supremo de Outworld e dos reinos vizinhos, para poupar sua vida. Ele diz a Shao Kahn que se eles realizarem o próximo torneio de Mortal Kombat em Outworld, os guerreiros de Earthrealm (Terra) devem viajar para longe de casa para participar. Kahn concorda com este plano e restaura a juventude e proeza nas artes marciais de Shang Tsung. Ele então estende o convite ao deus do trovão e protetor de Earthrealm, Raiden, que reúne os seus guerreiros e os leva para Outworld. O novo torneio é muito mais perigoso, já que Shao Kahn tem a vantagem de jogar em casa.

Apesar do enredo num jogo de luta com vários personagens à escolha estar longe de ser o mais importante, a empresa norte-americana Midway apostou numa história canónica com diversos reinos e mundos para justificar a presença de cada combatente no referido torneio. Numa época em que os videojogos de luta um-contra-um atingiam o pico da sua popularidade, primeiro nas máquinas arcade e depois nas consolas domésticas, muito por culpa de ‘Street Fighter II’ (1991) e todas as suas versões, um novo e importante concorrente surgiu. O primeiro ‘Mortal Kombat’ (1992), criado por Ed Boon e John Tobias, chamou a atenção tanto ou mais pela controvérsia que gerou do que pela sua própria qualidade. A representação de violência extrema e sangue (especialmente nas Fatalities, a forma que o jogador tem de executar o adversário num golpe especial final) usando gráficos digitalizados realistas levou mesmo à criação por parte do governo norte-americano de um regulador para definir classificações etárias para os videojogos.

‘Mortal Kombat II’ aproveitou a notoriedade do seu antecessor para apresentar um título em tudo superior ao original. Gráficos refinados e mais polidos, jogabilidade melhorada, sons digitalizados aprimorados e a introdução de um maior número de movimentos especiais para cada lutador, incluindo mais “fatalidades” mas também com a criação de Babalities ou Friendships, ambas finalizações não letais de combate e uma resposta irónica às polémicas em torno da violência dos jogos da série. O número de personagens jogáveis aumentou para 12 e para além do regresso de Liu Kang, Raiden, Johnny Cage, Scorpio e Sub-Zero, Johnny Cage, é desta vez possível jogar com Shang Tsung e Reptile e os novos lutadores Baraka, Jax, Kitana, Kung Lao e Mileena. No modo individual, o jogador terá que bater os últimos adversários Kintaro e Shao Khan para poder vencer o torneio e poderá, mediante algumas condicionantes, enfrentar também os lutadores escondidos Jade, Noob Saibot e Smoke.

Os anos 90 do século passado entraram para a história dos videojogos como a década em que finalmente a tecnologia permitiu que as adaptações para as consolas domésticas dos grandes jogos de máquinas arcade se processassem com grande qualidade, muitas vezes praticamente igualando o desempenho destas. O trabalho que a Acclaim Entertainment desenvolveu com ‘Mortal Kombat II’ é um exemplo disso mesmo. Tive o jogo emprestado para a Mega Drive e apesar de preferir o “meu” ‘Street Fighter II’: Special Champion Edition’ (no geral um melhor jogo de luta, com uma jogabilidade mais fluída e dinâmica), o título da Midway trazia inovações que o tornavam igualmente entusiasmante, como as já referidas formas de finalizar o combate (incluindo fatalidades próprias da arena em causa), lutadores escondidos e modos adicionais. O sucesso de ‘Mortal Kombat II’ permitiu afirmar uma franquia hoje detida pela Warner Bros e que, actualmente, com 11 títulos principais lançados, ultrapassou o rival de sempre ‘Street Fighter’ como a série de jogos de luta mais vendida da história dos videojogos. Flawless Victory!