Total 90s — XIX

Nesta edição à moda de Itália: como sobreviver num campo de concentração sem perder a concentração até ao final; um artista que pensa de forma positiva e com rima apurada para serenatas e um videojogo que não tem nada de italiano mas que permite fazer assentamentos de espáduas.

Filme: ‘A Vida é Bela’ — La Vita è Bella (1997)

Durante a Segunda Guerra Mundial em Itália, o singelo judeu Guido (Roberto Benigni) e o seu filho Giosué (Giorgio Cantarini) são capturados e enviados para um campo de concentração nazi em Berlim. Afastado da mulher Dora (Nicoletta Braschi), ele tem que usar a sua inteligência e fértil imaginação para fazer o menino acreditar que ambos estão a participar num grande jogo, com o intuito de mascarar a realidade diante dos seus olhos e assim protegê-lo do terror e da violência que os cercam.

A grande inspiração humana por detrás do filme deve-se a Rubino Romeo Salmonì. Foi a história deste judeu italiano apanhado pelos nazis em 1943 que chamou a atenção do actor, realizador e argumentista Roberto Benigni através do livro ‘Ho Sconfitto Hitler’ (em tradução literal, ‘Derrotei Hitler’), onde o escritor relata como sobreviveu a Auschwitz. Antes de a passar para a escrita, Rubino partilhou com crianças e adolescentes a sua experiência, mas fê-lo da forma mais otimista possível, como o livro transparece, moldando-se a um tom de certa ironia. Os motivos que levaram Benigni, cujo próprio pai passou dois anos num campo alemão de trabalhos forçados, a realizar o filme não foram políticos ou históricos, embora ele e o co-argumentista Vincenzo Cerami tenham tomado a precaução de contratar consultores do Centro de Documentação Judaica de Milão e feito visionamentos para grupos de judeus italianos, antes do lançamento. A sua vontade de contar uma história de amor e humanidade num contexto extremo, só precisou dessa confirmação, por assim dizer, científica, para se lançar na exibição internacional. A consagração além-fronteiras começou logo ao arrecadar o Grand Prix do Festival de Cannes de 1998.

Quando chegou aos Óscares, em 1999, ‘A Vida é Bela’ já era o filme estrangeiro mais rentável de sempre no mercado norte-americano: 21 milhões de dólares, ultrapassando ‘O Carteiro de Pablo Neruda’ (1994), de Michael Radford. Na cerimónia, a película conquistou três estatuetas (Melhor Filme Estrangeiro, Melhor Actor e Melhor Banda Sonora) mas o que mais ficou na memória foi o episódio de Benigni a passar por cima das cadeiras e aos saltos rumo ao palco para receber o seu primeiro troféu da noite pelas mãos da compatriota Sophia Loren. O filme centrou também a atenção também pelo debate que reacendeu sobre as possibilidades e limites da representação do Holocausto, com alguns críticos a não aprovarem o registo de tragicomédia mas com a grande maioria a abraçar a fábula de Benigni que o próprio simplesmente definiu como “inventada a partir da verdade”.

Em Portugal, ‘A Vida é Bela’ estreou apenas a 22 de Janeiro 1999, quase dois anos após a primeira exibição em Itália. Estava no meu primeiro ano de faculdade quando o fui ver ao cinema com colegas de turma que também partilhavam a paixão pela sétima arte e todos gostámos muito do filme. Apesar de, até então, não conhecer muito de cinema italiano (creio que o único filme italiano que tinha visto havia sido o clássico de 1976 ‘Feios, Porcos e Maus’, de Ettore Scola) e ainda menos de Roberto Benigni, fiquei impressionado com o trabalho deste e do pequeno Giorgio Cantarini que, curiosamente, encarnaria o papel do filho da personagem de Russell Crowe em ‘Gladiador’ (2000), a segunda vez em que o seu “pai” no grande ecrã arrecadaria a estatueta dourada de Melhor Actor.

Álbum: ‘Lorenzo 1994’ — Jovanotti (1994)

Lorenzo Cherubini, mais conhecido como Jovanotti, é um cantor e compositor italiano nascido em 1966. Descoberto pelo produtor musical Claudio Cecchetto quando trabalhava como disc-jockey, Jovanotti gravou o seu primeiro álbum em 1988 e este revelou-se um sucesso tão imediato quanto inesperado. ‘Jovanotti for President’ atingiu o terceiro lugar na tabela de vendas e, de certa forma, simbolizou e representou grande parte da juventude italiana dos anos 80, sem qualquer interesse em ideologias e política. Amparado pela boa repercussão na comunicação social italiana, o músico romano continuaria a trabalhar como DJ e lançaria até 1992 um novo álbum a cada ano, apresentando uma espécie difusa de som que mistura vários géneros musicais onde sobressaem o disco, ainda muito popular na Itália da época, e o rap, até então pouco ouvido no país.

Dois anos volvidos chegava às lojas a obra-prima de Jovanotti, um disco que a prestigiada revista Rolling Stone colocou em quinto na sua lista de melhores álbuns italianos de sempre. ‘Lorenzo 1994’ mantém a evolução musical do rapper italiano, desta vez misturando o hip-hop com influências do funk. Totalmente composto e produzido por Jovanotti, o álbum chegou, desta vez sem surpresa, ao lugar cimeiro no seu país natal (disco de diamante) e entrou também nas tabelas de vendas de Suíça (disco de ouro) Áustria e Alemanha. Afastando-se do estereótipo muitas vezes difundido que reduz o rap e hip-hop à sobreposição da palavra por cima do som de uma caixa de ritmos e samples, ‘Lorenzo 1994’ é musicalmente muito rico. Para além da guitarra de Michele Centonze e do baixo de Saturnino Celani, é audível uma variedade de instrumentos (tais como o trompete, saxofone, piano, órgão, vários tipos de percussão e até o acordeão) que combinam de forma perfeita com a voz do cantor e com a eficácia das suas palavras, da sucessão rítmica das mesmas e do choque de um conceito com o seu oposto, em que Jovanotti mostra pela primeira vez fortes lampejos ideológicos.

O sucesso comercial de um álbum é ditado fortemente pelos dos seus singles e em ‘Lorenzo 1994’ estes ajudaram definitivamente Jovanotti a tornar-se conhecido para além das fronteiras transalpinas. ‘Penso Positivo’ foi o primeiro a ser lançado, ainda em 1993, e chegou rapidamente às rádios de toda a Europa e América Latina. A letra tenta destacar as contradições sociais e, ao mesmo tempo, passar uma mensagem positiva. Seguiu-se ‘Serenata Rap’, possivelmente o maior êxito de toda a carreira do artista. Uma actualização moderna da clássica canção de amor com alguma ironia à mistura. O terceiro single, ‘Piove’, não teve tanta rotação como os dois anteriores mas o tema voltaria à ribalta anos depois quando foi incluído nos créditos finais de um episódio da popular série ‘Os Sopranos’. Em Itália apenas, ‘Voglio di +’ ainda foi também lançada como single mas foi a belíssima ‘Io ti cercherò’ que mereceu honras de ser incluída, juntamente com os primeiros três singles, na colectânea ‘Lorenzo 1990–1995’ lançada no ano seguinte. Seguir-se-iam ‘Lorenzo 1997 — L’albero’ e mais 10 álbuns de originais, em que a sonoridade world music prevalece, sendo o mais recente ‘Mediterraneo’, do presente ano.

O italiano sempre foi um dos idiomas estrangeiros que mais me agradaram. Mesmo na sua forma falada, tem uma certa “musicalidade” que entra bem no ouvido. Relativamente a música italiana propriamente dita, a geração dos meus pais teve artistas como Gianni Morandi ou Toto Cutugno exemplos de sucesso além-fronteiras mas durante a minha infância e pré-adolescência Itália só exportou o fenómeno Italo disco, em que os intérpretes até cantavam maioritariamente em inglês. O ano de 1993 veio mudar o paradigma através de Eros Ramazzotti e Laura Pausini, cujas canções começaram a rodar frequentemente nas rádios nacionais. Estavam abertas as portas para Jovanotti e os singles acima referidos fizeram muito sucesso. Pude conhecer o álbum através de um amigo e colega de escola que me emprestou o CD. Apesar do rap e o hip-hop não fazerem parte dos meus géneros musicais preferidos, fiquei fã da sonoridade de Jovanotti, tanto que me foi difícil reduzir os quase 72 minutos de duração do CD para gravar para mim em 60 minutos de uma cassete. Acabei por comprar os dois álbuns seguintes mas foi este o que mais me marcou… e que terá marcado também esse meu amigo de escola, uma vez que iniciaria uma bem-sucedida carreira de rapper anos depois.

Jogo de computador: ‘WWF Royal Rumble’ (1993)

Desenvolvido pela Sculptured Software (mais tarde Acclaim Entertainment) e lançado em 1993 para as principais máquinas das rivais nipónicas Nintendo e Sega (via LJN e Flying Edge, respectivamente), o jogo conta com algumas das maiores figuras da luta livre profissional norte-americana dessa década. As versões Super Nintendo (SNES) e Mega Drive chegaram ao mercado com três meses de diferença, cada uma delas com lutadores exclusivos. As duas versões têm em comum sete figuras: Bret “Hitman” Hart, Undertaker, Shawn Michaels, Razor Ramon, o “Macho Man” Randy Savage, Crush e o “Narcisista” Lex Luger. Os cinco restantes diferem entre versões. Para a SNES é possível jogar com Ric Flair, Mr. Perfect, o “Million Dollar Man” Ted DiBiase, Yokozuna e Tatanka. Na Mega Drive estes nomes dão lugar aos de Hulk Hogan, IRS, “Hacksaw” Jim Duggan, o “Model” Rick Martel e Papa Shango. O jogo permite combates ‘One-on-One’, onde o jogador enfrenta o computador ou um segundo jogador (com a opção de jogar com ou sem regras oficiais e de torneio); ‘Tag Team’ e ‘Triple Tag Team’, em que se digladiam equipas de dois e de três lutadores, respectivamente, e ‘Royal Rumble’, o modo “todos contra todos” que dá nome ao jogo.

Mais do que um desporto de combate, a luta livre profissional norte-americana (ou wrestling, como é conhecido por todo o mundo) é todo um espectáculo tanto atlético como teatral. Assente em combates encenados de desfecho pré-acordado, o wrestling é uma das mais populares formas de entretenimento nos Estados Unidos e a sua adaptação aos videojogos tornou-se inevitável. O primeiro jogo de computador com a licença da World Wrestling Federation (WWF) remonta ao ano de 1987 através de ‘MicroLeague Wrestling’, seguindo-se outros como ‘WWF WrestleMania’ (1989) e ‘WWF Super WrestleMania’, lançado em 1992 para a SNES e Mega Drive. Este último deu início a uma espécie de trilogia de lançamentos da Sculptured Software, com o próprio ‘WWF Royal Rumble’ a sucedê-lo e ‘WWF Raw’ (1994) a fechar a série.

Quando se fala de wrestling em Portugal, associa-se quase de imediato esse tipo de luta livre à figura de Tarzan Taborda, um lendário lutador português que combateu nos palcos nacionais e internacionais ao maior nível entre os anos 50 e os 70 do século passado, tendo sido mesmo por cinco vezes campeão mundial. Nos anos 80, o wrestling desapareceu por completo em Portugal, precisamente na mesma altura que nos EUA a modalidade iniciava a grande expansão até aos dias de hoje. Só em 1992 reapareceu em Portugal pela televisão, com a RTP a transmitir os primeiros espectáculos de wrestling com narração do locutor António Macedo. A partir daí, e com comentários sui generis de Tarzan Taborda, passou a ser líder de audiência na hora de almoço de sábado e criou uma legião de fãs nacionais.

O fenómeno televisivo do wrestling em Portugal também não me deixou indiferente, especialmente porque chegou quando estava a entrar na adolescência e os desenhos animados já não entusiasmavam como antes. Apelou-me todo aquele “circo” dentro e fora do ringue e nem mesmo o facto de cedo ter percebido que muito do que se passava era a fingir me afastou da televisão. Os comentários curiosos de Tarzan Taborda representaram muito desse apelo, com o próprio frequentemente a gabar-se dos seus feitos passados e constantemente a desafiar outros para combate mesmo quando já estava prestes a completar 60 anos. Era uma gabarolice inocente e divertida, sem cair na arrogância, e a verdade é que isso cativava os telespectadores. Quanto ao jogo, um colega de escola tinha o mesmo para a Mega Drive e era frequentemente aproveitar os “furos” no horário das aulas para umas jogatanas em casa dele. Cada lutador tinha os seus movimentos especiais e músicas e era inclusive possível pegar numa cadeira junto ao ringue e atingir outro lutador (ou o árbitro) com esta. Tudo a brincar, como na realidade.