Total 90s — XX

Neste mês: um cruzar de pernas que não estava no argumento mas que é quase mais famoso que o próprio filme; uma banda a atingir o seu auge numa época em que a música era outra e um videojogo que prova que o futebol também pode ser sensível.

Filme: ‘Instinto Fatal’ — Basic Instinct (1992)

Johnny Boz, antiga estrela de rock e proprietário de um clube nocturno em São Francisco, é encontrado morto na sua cama. O caso é entregue ao detective Nick Curran (Michael Douglas), que possui um passado de alcoolismo e consumo de drogas, embora já esteja recuperado. A principal suspeita é Catherine Tramell (Sharon Stone), uma atraente e manipuladora romancista que mantinha uma relação há já algum tempo com Boz. A psiquiatra da polícia, Beth Gardner (Jeanne Tripplehorn), ex-namorada de Nick, é convidada a participar nas investigações, depois de se descobrir que o homicídio de Boz foi copiado directamente de um dos romances de Catherine. Nick acaba por se envolver demasiado e todos parecem ser suspeitos.

O argumento, inicialmente intitulado ‘Love Hurts’, foi escrito pelo húngaro-americano Joe Eszterhas em 13 dias e motivou uma guerra de licitação entre estúdios até ser vendido à Carolco Pictures por três milhões de dólares. Os personagens principais, Catherine Tramell e Nick Curran, foram inspirados por pessoas reais que Eszterhas conheceu antes de se tornar argumentista. Para o papel de Nick foi escolhido Michael Douglas e este recomendou que se contratasse Kim Basinger para sua co-protagonista. A actriz recusou o papel e o mesmo acabou por ser entregue à, então, pouco conhecida Sharon Stone, que havia trabalhado dois anos anterior com o realizador holandês Paul Verhoeven em ‘Desafio Total’. Mesmo antes de seu lançamento, o filme gerou uma controvérsia acalorada devido à sua sexualidade explícita e representação da violência. Nos Estados Unidos, a obra foi classificada como R por “forte violência e sensualidade, e por uso de drogas e linguagem”. Inicialmente, o órgão regulador MPAA atribuiu uma classificação NC-17 pela “representação gráfica de violência extremamente explícita, conteúdo sexual e linguagem forte”, mas sob pressão da TriStar Pictures e da Carolco, Verhoeven cortou 35 a 40 segundos para obter uma classificação R.

Apesar da negatividade crítica inicial e do protesto público, ‘Instinto Fatal’ tornou-se um dos filmes de maior sucesso financeiro dos anos 90, arrecadando 352 milhões de dólares em todo o mundo. Várias versões do filme foram lançadas em VHS, DVD e Blu-ray. O filme tem sido reconhecido pelas suas descrições inovadoras de sexualidade no cinema de Hollywood, e tem sido referido por alguns críticos como uma obra-prima neo-noir que agita e transgride as regras narrativas do film noir. Já a sua sequela — ‘Instinto Fatal 2’ — rodada 14 anos após o original e de novo com Stone no papel da enigmática Tramell, foi um fracasso tanto a nível da crítica como em termos de bilheteira. Realizado pelo escocês Michael Caton-Jones e com o inglês David Morrissey como co-protagonista, o filme nunca chega a “quebrar o gelo” que o seu antecessor habilmente explorou.

‘Instinto Fatal’ estreou em televisão no nosso país em 1995 por intermédio da RTP em ‘Lotação Esgotada’, o programa de quarta-feira à noite onde passavam os filmes mais sonantes que chegavam ao pequeno ecrã. Lembro-me de pedir a um colega de escola para gravar o filme para mim mas não me recordo da razão ao certo, se foi pelo videogravador estar avariado, por não ter cassetes virgens na altura ou simplesmente por ter alguma vergonha em meter a gravar em casa um filme que estava classificado para “maiores de 18” enquanto eu era um recém-adolescente. Essa classificação nunca me impediu de ver filmes de terror até enquanto criança mas ‘Instinto Fatal’ era um caso diferente e, como thriller erótico, já trazia uma fama polémica, incluindo o cruzar de pernas mais célebre da história do cinema por parte de uma actriz de quem eu até tinha um poster no quarto.

Álbum: ‘Swagger’ — Gun (1994)

Os Gun são uma banda escocesa de rock actualmente composta por Dante Gizzi (voz), Giuliano “Jools” Gizzi (guitarra principal), Tommy Gentry (guitarra rítmica), Andy Carr (baixo) e Paul McManus (bateria). Os irmãos Gizzi são os únicos elementos presentes em todos os sete álbuns de originais lançados pela banda, que contou com vários músicos desde a sua formação em 1987 mas cuja carreira pode ser essencialmente dividida em duas partes: antes e depois de 1997. Até ao referido ano, os Gun lançaram quatro álbuns e obtiveram considerável sucesso liderados por Mark Rankin, o vocalista original. ‘Taking On the World’ (1989) apresentou a banda ao mundo através de singles como ‘Better Days’ e da canção que dá nome ao álbum. Seguiu-se ‘Gallus’ (1992) e os temas em destaque ‘Steal Your Fire’ e ‘Higher Ground’.

Apesar de nunca terem atingido o nível de superestrelas do rock, o ano de 1994 representou o mais próximo que os Gun tiveram dessa notoriedade. O lançamento de ‘Swagger’, o terceiro álbum de originais, provou ser o mais bem-sucedido da sua carreira e o sucesso do mesmo deveu-se sobremaneira ao impacto do seu primeiro single. ‘Word Up!’, uma actualização hard rock do original funk de 1986 dos norte-americanos Cameo, entrou para as tabelas de diversos países europeus e fez-se ouvir frequentemente nas rádios e canais de música. A versão dos Gun de ‘Word Up!’ entrou mesmo para a história ao conquistar o troféu de ‘Melhor Cover’ na primeira edição de sempre dos ‘MTV Europe Music Awards’, realizada a 24 de Novembro de 1994 junto às Portas de Brandeburgo, em Berlim, cinco anos após a queda do Muro que dividiu a Alemanha. A canção dos Gun bateu as populares ‘Love Is All Around’ dos Wet Wet Wet e ‘Go West’ dos Pet Shop Boys, entre outras.

‘Swagger’ foi produzido pelo inglês Chris Sheldon, que já havia trabalhado com nomes sonantes da música como Roger Waters (ex-Pink Floyd) ou Pixies, e destacou-se por ter sido a primeira vez que os Gun se apresentaram como um quarteto. A acompanhar Rankin e os manos Gizzi esteve o baterista Mark Kerr, irmão do vocalista dos conterrâneos Simple Minds. Para além de ‘Word Up!’, ‘Swagger’ originou mais três singles nas tabelas britânicas: ‘Don’t Say It’s Over’, ‘The Only One’ e Something Worthwhile’. Com um alinhamento total de 10 canções assentes num estilo hard rock ameaçado na época pela revolução musical trazida pelo grunge ou pela resposta do britpop, os Gun conseguiram atingir um prestigiante quinto lugar na lista de vendas do Reino Unido. Contudo, a banda de Glasgow sucumbiria às pressões da sua editora discográfica três anos mais tarde com o sofrível ‘0141 632 6326’. As más decisões começaram com o título do quarto álbum (que era o número de telefone para onde os fãs podiam ligar para saber informações do grupo) e acabaram na sonoridade do próprio disco, muito mais pop que rock e longe das raízes e identidade da banda. Mark Rankin aparentemente reformou-se e os Gun só voltariam aos discos em 2012, com Dante Gizzi a trocar o baixo pelo microfone.

Os Gun continuam no activo e com novo álbum — ‘The Calton Songs’ — com estreia marcada para Outubro deste ano. O anterior ‘Favourite Pleasures’ (2017) até me agradou bastante mas não o suficiente para continuar a considerar a banda como a minha preferida. Na altura de ‘Swagger’ era certamente até porque não deixa de ser interessante ter um grupo predilecto que não é muito conhecido do grande público e cujas canções não são tão “batidas”. Sabia as letras das 10 faixas do álbum de cor e cantava-as do início ao fim, muito por culpa da voz de Mark Rankin, perfeita para a sonoridade dos Gun e que contribuiu muito para o meu gosto em cantar. Depois da separação, a banda nunca mais foi a mesma e descaracterizou-se completamente com a troca de vocalista, que nunca foi devidamente explicada. Rankin desapareceu completamente do radar no auge da sua fama e forma vocal e, de vez em quando, lá faço eu uma pesquisa no Google para tentar descobrir alguma notícia relacionada com o seu possível regresso à música, até hoje sem qualquer resultado.

Videojogo: ‘Sensible Soccer International Edition’ (1993)

‘Sensible Soccer’ é uma série de videojogos de futebol que deve o seu nome à Sensible Software, produtora britânica fundada em 1986 pelos amigos de escola Jon Hare e Chris Yates. Conhecida pelos seus sprites exageradamente pequenos também em jogos como ‘Mega-Lo-Mania’ ou ‘Cannon Fodder’ (1993), foi através da sua série dedicada ao desporto-rei que a Sensible Software obteve mais êxito e reconhecimento. A primeira incursão pelo futebol começou com ‘MicroProse Soccer’ (1988), fortemente influenciado por ‘Tehkan World Cup’ (1985) das máquinas arcade, até que em 1992 ‘Sensible Soccer: European Champions’ deu início à famosa saga. Este título foi lançado apenas para os computadores caseiros da época mas o seu sucesso levou a que Hare e Yates desenvolvessem, ainda no mesmo ano, um novo e ligeiramente melhorado jogo para praticamente todas as consolas fixas e portáteis disponíveis no mercado.

No ano seguinte é lançado ‘Sensible Soccer International Edition’, sob aclamação da crítica e bons resultados em termos de vendas. Relativamente ao seu antecessor, o jogo apresentou algumas melhorias a nível da já elogiada jogabilidade, a opção de poder jogar um modo de Campeonato do Mundo e o licenciamento de clubes e jogadores, com todas as equipas a apresentarem os plantéis actualizados da época 1993/94 e com os nomes reais dos atletas. Disponível para Amiga, Amiga CD32, Atari ST, Atari Jaguar, Super Nintendo e Mega Drive, esta versão de ‘Sensible Soccer’ apresenta a característica vista aérea (mais distante do que em outras séries de jogos com a mesma perspectiva de câmara como ‘Kick Off’ ou ‘Match Day’) e a jogabilidade rápida e simples que desde cedo se tornou a sua imagem de marca.

A saga continuaria forte durante o resto da década de 90 com ‘Sensible World of Soccer’ (1994) a ser alvo de inúmeros elogios por introduzir também um modo de treinador. O modo de carreira neste jogo permite ao “técnico de bancada” orientar um clube durante 20 épocas. Até hoje ‘Sensible World of Soccer’ é o videojogo de futebol com o maior número de equipas incluídas, com um total de 1300 clubes, 142 selecções e 48 equipas personalizadas predefinidas, totalizando 1490 formações e 27 mil jogadores, aproximadamente. Se em termos de futebol “jogado”, a série ‘Sensible Soccer’ viu emergir a franquia ‘FIFA’ e teve que debater-se com a popularidade desta, no âmbito da gestão como treinador a tarefa não foi menos fácil, uma vez que a saga ‘Championship Manager’ já dominava o mercado há alguns anos. No entanto, a “jóia da coroa” da Sensible Software e todas as suas sequelas ao longo da década provaram ser sempre uma opção diferenciada de qualidade.

Nunca tive qualquer ‘Sensible Soccer’ e o meu primeiro contacto com a série deu-se através de ‘Sensible Soccer International Edition’ que o meu primo comprou para a Mega Drive. A primeira impressão é que se tratava de um jogo graficamente datado, sem animações extras, dados estatísticos ou valores diferenciadores de equipas ou jogadores. Contudo, de comando na mão, todas essas supostas lacunas eram ignoradas face à jogabilidade impecável e viciante. Outro dos factores aliciantes de ‘Sensible Soccer’ era a possibilidade de jogar com um clube e não apenas uma selecção, como acontecia com a maioria dos outros jogos de futebol para as consolas. Antes apenas existia ‘European Club Soccer’ (1992) mas a sua jogabilidade era pouco mais que medíocre. Retrospectivamente, é irónico constatar que ‘Sensible Soccer’ é o videojogo de futebol da década de 90 que melhor envelheceu, apesar de na altura ter sido visto como menos evoluído face à concorrência. Cada vez que corro um emulador de jogos da era dos 16 bits, é o primeiro do género que costumo revisitar. Às vezes menos é mais.