Perfect Days – A Uma Vida Simples

★★★★ – O novo filme de Wim Wenders é uma ode à beleza da vida, encontrada nos mais simples momentos do quotidiano.

‘Perfect Days’ é um slice of life pouco convencional sobre um homem que vive uma existência solitária em Tóquio, e cujo trabalho consiste em limpar casas de banho públicas. A sua rotina é simples, repetitiva, meticulosa, e uma beleza para os olhos dos espetadores que sonham com uma existência zen. Em contrapartida, é um terrífico pesadelo para aqueles que gostam da imprevisibilidade da vida.

Hirayama, interpretado pelo lendário Koji Yakusho (Cure – Crónicas do J-Horror: Episódio XVI), viaja por Tóquio na sua carrinha azul equipada de produtos de limpeza até ao teto, em busca das casas de banho públicas mais belas, artísticas e futuristas, possivelmente do mundo, e limpa-as de modo diligente, carregando consigo até um mini espelho para observar se há o mais ínfimo rasto de sujidade debaixo ou nos cantos das sanitas.

A sua admirável dedicação a um trabalho cuja maioria das pessoas faria às três pancadas, como afirmado pelo colega Takashi, um jovem falador que raramente consegue arrancar uma resposta do estoico e silencioso Hirayama, reflete-se em todas as vertentes da sua vida.

Ele acorda antes dos primeiros raios de Sol atravessarem as janelas, arruma o seu futon, lava os dentes, apara o bigode, rega as plantas, recolhe a carteira, as chaves, o telemóvel sénior, e sai de casa com um sorriso na cara, como se grato por mais um dia neste maravilhoso planeta. A caminho do trabalho, ouve música dos anos 70 escolhida a dedo por Wenders, cujas melodias temperam o mood do filme de forma excecional, com especial destaque para Perfect Day, de Lou Reed. Nos intervalos de almoço, vai ao parque e tira fotografias às árvores e folhas atravessadas por raios solares, capturando os seus padrões numa máquina analógica. Após o serviço, vai a casa, muda de roupa, relaxa num banho público e janta num restaurante do metro, onde o dono o recebe sempre com um sorriso e uma bebida fresca, como que uma recompensa por mais um dia de trabalho e esforço.

Acompanhamos Hirayama e a sua rotina fixa durante o que podem ser dias ou semanas, enquanto Wenders e o diretor de fotografia Franz Lustig embelezam as coisas mais banais, como por exemplo, a limpeza delicada de casas de banho públicas, de arquitetura e design fantásticos; pequenas plantas que crescem entre raízes de árvores; leituras noturnas sob a luz de um candeeiro fraco; assim como planos abertos de Tóquio que se entrelaçam com os olhos de Hirayama, sempre atento e misterioso.

Ao longo do filme, diferentes personagens vão atropelando a sua rotina, quer seja o colega Takashi que lhe pede a carrinha emprestada para poder sair com uma rapariga, ou a visita inesperada de familiares distantes que, em ambas as situações, nos revelam mais traços da sua personalidade.

E esta é, basicamente, a premissa de Perfect Days. Não há reviravoltas, subversões, surpresas, revelações, nada… ou muito pouco. É um filme que vive no momento, tal como a personagem central, e talvez por essa razão é que é tão fascinante.

Carregado por uma silenciosa, mas poderosa performance de Koji Yakusho (que lhe galardoou com o prémio de Melhor Ator em Cannes), este filme é um autêntico ASMR do quotidiano, ambíguo na caracterização, e ensina-nos a viver no momento, a apreciar as pequenas coisas que damos como garantidas no nosso mundo stressante e em constante movimento, e aconselha-nos a parar e a observar a beleza natural que nos rodeia, quer seja em forma de árvores, templos, arranha-céus ou arte (Hirayama é um grande apreciador de leitura e música).

A escrita minimalista de Wim Wenders e Takuma Takasaki obriga-nos também a especular mais do que nos explica o que se passa, e deriva muito da sua composição visual em prol de diálogo extenso. É um filme que entende a realidade do que nos quer passar. Sim, talvez seja possível viver uma existência realizada através de um modo de vida simples, mas tal destino não vem sem sacrifício, e percebemos isso à medida que fragmentos do passado de Hirayama se revelam em pequenas interações, dando-nos uma conclusão agridoce num final shot épico que merece ser estudado por todos aqueles que ambicionam um dia tornarem-se cineastas.

Retornando ao ponto, talvez não seja possível entender o significado de felicidade sem primeiro experienciar as tragédias que a vida nos atira, talvez a felicidade em conceito ideal seja uma ilusão, e que apenas a conseguimos encontrá-la em pequenos fragmentos, ou talvez tudo o que precisamos é da habilidade mental para conseguir apreciar os momentos mais banais da nossa existência, ignorando as pressões alheias.

A ambiguidade de Perfect Days e o foco na simplicidade do quotidiano (Wim Wenders inspira-se fortemente na temática do cinema de Ozu) acaba por nos colocar, mesmo se por acidente, uma questão existencial pertinente para o mundo atual. Perante a complexidade da vida, os desafios do quotidiano, as tragédias iminentes, e o excesso de informação:

Conseguimos nós, hoje em dia, viver uma vida simples?

Perfect Days não é um filme perfeito, mas nos dias de hoje, talvez seja perfeitamente o filme que precisamos.

Segue abaixo o trailer de Perfect Days, que recebeu este ano uma nomeação ao Óscar de Melhor Filme Internacional.